1- Num fim-de-semana estranhamente sem futebol, aproveitei para ir visitar a minha cidade do Porto. Na companhia de um amigo, também portuense mas actualmente a viver no estrangeiro por razões de trabalho, seguimos o meu roteiro infalível nas idas ao norte, o qual passa obrigatoriamente por uma paragem na Mealhada, para o leitão. Estava divino, a crise ainda não chegou ao leitão! Retomado o caminho para cima, fui deixá-lo a Francelos, aproveitanto para uma breve visita à terra dos meus primeiros Verões de infância: a Granja. Continua a haver casas esventradas e abandonadas, mas há muitas mais recuperadas ou bem conservadas. Surgiram novas construções, umas feias e pretensiosas, outras aceitáveis, mas a praia recuperou a areia e o hotel foi reabilitado. Intacto, imenso, carregado de nostalgia, estava o mar bravo de sempre, a espuma da ressaca suspensa no ar e o sublime cheiro a maresia, como em nenhum outro lado que eu conheça. Dali até Francelos, tudo melhorou, em termos de obras públicas: os passeios pedonais e a ciclovia até Gaia, os jardins, a sinalização, as estradas. Estamos nos domínios de Luis Filipe Menezes, que conseguiu transformar, para melhor, um dos maiores e outrora mais degradados concelhos do país. Mas, como não há bela sem senão, vai deixar Gaia endividada até ao osso, quando, na Primavera próxima, se candidatar ao Porto. As seis ou sete auto-estradas que convergem para o Porto, de norte, sul ou leste, são também elas, nas suas expostas mordomias, uma explicação eloquente para a ruína do país. Inconformadas com o fim das SCUT, as populações locais querem-nas de volta grátis - isto é, a juntar à dívida do Estado, para mais tarde ser paga pelos contribuintes e gerações futuras. Assim chegámos onde estamos.
A multidão que à minha frente vi desfilar depois na Avenida dos Aliados, gritando «basta!», tinha, porém toda a razão para se indignar com a cura a que agora nos sujeitam: não se recuperam trinta anos de irresponsabilidade em três anos de sufoco absoluto; não se recuperam as finanças públicas destruíndo a economia de um país e as vidas dos seus homens e mulheres. No Porto, como em Lisboa, Coimbra e tantos outros lados, sob um calor tropical que só convidava à praia, marchou-se contra a loucura insane e insensível de uns robots da economia, que de economia nada entendem e do resto não querem saber. E, quando a multidão debandou ao cair da tarde e o festival D'Bandada se iniciou em vários pontos ao ar livre da cidade, muitos continuaram, ao som da música, a passar a mesma mensagem: o País pode estar moribundo, mas o Porto continua vivo. Mui nobre, leal e sempre invicta cidade.
É sem desejo algum de ofensa que o digo: há no Porto uma dignidade cívica e uma identidade, que é mais do que apenas cultural, e que Lisboa há muito perdeu. Muito do que é a alma e o espirito do Porto serve para explicar as décadas de sucesso do FC Porto, a sobrevivência de sectores como os têxteis e o calçado, em concorrência feroz contra o dumping social do Extremo Oriente, a persistência da fileira dos vinhos, a existência de algumas das melhores empresas do país (seguramente, a maioria), a melhor arquitectura portuguesa, a melhor literatura (Agustina, Mário Cláudio), etc. Não é uma mentira feita dizer que o Porto trabalha e Lisboa discute, o Porto triunfa e Lisboa inveja, o Porto melhora e Lisboa retrocede. A maledicência permanente de Lisboa contra o FC Porto é apenas um eloquente exemplo de como a mediocridade reage perante o sucesso alheio.
Em termos de cidade, é absolutamente impressionante o que o Porto tem melhorado de há vinte anos para cá, e continuadamente, de vereação em vereação, desde Fernando Gomes. As boas e velhas virtudes burguesas, que sempre caracterizaram o Porto - o trabalho, o comercio sério, a importância da arte e da criatividade, a integração social, a vida republicana, no bom sentido (os bairros, as colectividades, as relações de vizinhança, o respeito pelas tradições populares) - têm feito o Porto evoluir para melhor sistemáticamente, em contraste com Lisboa, uma cidade cada vez mais desagradável, mais degradada, com menos árvores, menos jardins, menos espaços públicos, mais horrores arquitectónicos e vereações cuja maior preocupação parece ser a de brincar às revoluções do trânsito, como agora sucede no Marquês e Avenida da Liberdade. Não fosse o Tejo, e Lisboa não valia nada, como cidade. E mesmo o Tejo não está ainda tapado porque alguns cidadãos o não deixaram.
Mas não sou daqueles que manda as culpas todas para cima de eles os políticos. Muito do mal que existe na cidade de Lisboa resulta de um déficite de cidadania, do amorfismo cultural dos seus habitantes, de uma atitude cívica que consiste apenas em ficar sentado nos cafés a dizer mal de tudo. Basta, aliás, comparar os cafés de Lisboa com as confeitarias do Porto, para se perceber isto: lá em cima, desde o próprio café até à pastelaria, desde as cadeiras até às mesas, passando pelo serviço e pela simpatia, faz-se um comércio de restauração sério e digno. Cá em baixo, ainda estamos no tempo das cadeiras de plástico da Olá, da máquina das «bicas» que faz um barulho infernal e incomoda toda gente, dos empregados especializados em jamais cruzar o olhar do cliente, não vá ele querer qualquer coisa. Não há brio, não há profissionalismo, não há vontade de inovar ou melhorar, e as únicas medidas contra a crise que os empresários de restauração conhecem é subir o preço aos clientes e baixar o ordenado aos empregados. Sem surpresa alguma, o Porto tem incomparavelmente mais e melhores cafés, restaurantes, galerias de arte, jardins e espaços públicos, árvores nas ruas, passeios tratados.
Sem surpresa alguma, nos últimos anos e em números crescentes de ano para ano, o Porto começou a conviver com uma espécie antes desconhecida: os turistas. Tudo aquilo que Lisboa tinha por inércia, devido à sua fama de cidade (outrora) branca, devido à localização do seu porto, ideal para cruzeiros (e que lá em cima não há), o Porto começou a ter também. Mas graças ao seu mérito, graças à sua qualidade de vida e a uma superior preservação dos edifícios e zonas históricas. Graças às Low cost e ao aeroporto de Pedras Rubras - que este incompetente governo quer agora privatizar num bolo conjunto com todos os aeroportos nacionais, fazendo o mesmo ao caso de sucesso que é o Porto de Leixões. E graças — ó sim, invejosos e maledicentes graças ao FC Porto, o clube - bandeira da cidade, que conseguiu o que nem o vinho do Porto, nem a Casa da Música, nem o Rui Rio conseguiriam por si só jamais: levar o nome da cidade ao mundo inteiro. A partir do momento em que o clube que tem o nome da cidade se tornou presença habitual ao mais alto nível do futebol mundial, em que chegou a campeão europeu e campeão do mundo, a imprensa internacional e o público começaram a descobrir que, por detrás do clube, havia também uma cidade que valia a pena. Nunca em Portugal, e raras vezes em qualquer outro lugar, uma cidade deveu tanto a um clube. Esse é o grande orgulho do FC Porto e não o ter compreendido e ter feito do clube um inimigo é a grande nódoa nos mandatos de Rui Rio.
Em termos de futebol, no Porto comenta-se agora que, sem a venda de Hulk, o clube teria de fechar também o andebol e o hóquei, como fez com o basquete, porque não havia dinheiro para pagar salários aos atletas. Comenta-se que o Benfica não terá recebido mais de 20 milhões pela venda do Witsell, e que só Jorge Mendes, à sua conta, recebeu 4 milhões de intermediação. O mesmo Jorge Mendes que se declarou solidário com a tristeza de Ronaldo, deprimido por não poder aumentar o seu parco salário de 900.000 euros por mês sem ter de pagar impostos, coitadinho. (Mas mais tristes ainda devem andar os adeptos do Real, a oito pontos do Barcelona ao fim de quatro jornadas, com tantos milionários tristes e sem equipa, como disse Mourinho). E comenta-se também a casa/hotel que Souto Moura desenhou, entre a Boavista e a Foz, para o mesmo Jorge Mendes, e em cuja garagem cabem 35 carros! Nem todos estão arruinados no futebol. Aliás, a ruína de uns (os clubes) é a fortuna de outros. Não faltarão ocasiões para falar disso.
Sem comentários:
Enviar um comentário