quinta-feira, maio 01, 2008

NÃO HÁ MILAGRES (22 ABRIL 2008)

Eu, se mandasse ali, mandava-os calar a todos e só o Rui Costa é que falava em nome do Benfica. Podem crer que muito do respeito e crédito perdido começava logo a ser recuperado.

«É possível enganar muitos durante algum tempo; é possível enganar alguns durante muito tempo; mas não é possível enganar todos durante todo o tempo»
John F. Kennedy

1- Se ontem à tarde (quando escrevi este texto) ainda era presidente do Benfica, e se o sentido do rídiculo não o levou a rever a agenda marcada, Luis Filipe Vieira terá estado na sede da Liga de Clubes a apresentar «provas» dos resultados «viciados» que, em sua opinião, são a única coisa que impede o Benfica de estar agora no segundo lugar ou mesmo no primeiro, de estar na final da Taça, de ser campeão europeu ou de escalar o Evereste a pé coxinho. Porque a equipa é «a melhor da década», ele é um gestor de primeira água, o clube é o «maior do mundo», atestado pelo Guiness, a «Instituição» é um modelo de excelência e de virtudes. A concorrência é que é feia e batoteira e disfarça a sua incompetência com «resultados viciados» — conforme a Dr.ª Maria José Morgado se encarregará de provar a seu tempo.

Vieira tem azar: de cada vez que solta a sua ladaínha em defesa da «verdade no futebol», a equipa do clube encarrega-se de espelhar a verdade em campo. Em dez dias, foi a derrota caseira com a Académica por números escandalosos, os cinco golos sofridos do Sporting em vinte minutos e uma banalíssima derrota no Dragão, que só não se transformou em humilhação porque os jogadores do FC Porto tiveram uma atitude generosa de piedade para com os colegas de ofício.

Há duas semanas atrás, inchado da quase única boa exibição do Benfica em toda a época, no Bessa, mas incapaz de perceber que a sorte e o azar também fazem parte do futebol, Viera gritou «chamem a polícia!» — para investigar dois pretensos «penalties» que só os benfiquistas estão certos de terem visto e o árbitro não. E, mais uma vez, os acontecimentos deram-lhe razão, mas sob a forma de tragicomédia: a polícia foi chamada ao Estádio da Luz para investigar o arrombamento e saque das instalações de uma das claques benfiquistas, levada a cabo… por outra claque benfiquista; foi chamada ao centro de treinos do Seixal para pôr termo ao apedrejamento do autocarro do clube, com a equipa lá dentro, levada a cabo…por adeptos do Benfica; e foi chamada a guardar o «vermelhão» nas suas instalações de Gaia para que os adeptos do Benfica no Porto (como se sabe, os mais numerosos da cidade…) não tivessem a ideia de completar a obra dos seus congéneres de Lisboa. No meio disso, o próprio presidente do clube é alvo de sondagens televisivas a mandá-lo para casa e tem que se esconder dos adeptos para apanhar o «vermelhão» a meio do percurso.

«Os adeptos são ingratos», pensará Luis Filipe Vieira a esta hora. Talvez, mas também é verdade que Deus não dorme: de cada vez que um presidente do Benfica faz ponto central da sua gestão o incitamento ao ódio anti-Porto e se desculpa dos maus resultados desportivos com as maquinações ocultas, o FC Porto avança mais ainda e o Benfica recua. Os benfiquistas poderiam já ter aprendido a dolorosa lição com Vale e Azevedo, mas, pelos vistos, não. Custa-lhes a acreditar que o sucesso exija esforço, trabalho, humildade, planeamento e tempo.

Tomem o exemplo do Chalana. Salvo erro, pegou na equipa há oito jogos e ganhou um. Começou por perder a UEFA com um jogo miserável em Getafe, que ele considerou excelente; perdeu a Taça, cilindrado pelo Sporting, na única vez em que o Benfica teve de sair da Luz para disputar uma eliminatória; foi o desastre que foi com a Académica e a tristeza pungente com o FC Porto (em todo o jogo, teve uma única ocasião de golo, graças à anatomia do Luisão, cujo 1,98 metros lhe permitiu naturalmente chegar mais alto a um canto do Rui Costa do que toda a defesa do FC Porto). Mas, enfim, compreende-se que não houvesse mais ninguém para pegar na equipa neste penoso final de época. O que já não se compreende é que deixem o Chalana falar depois dos jogos e afirmar coisas tão patéticas como «não ganhámos no Bessa por outras razões e tem sido assim todo o campeonato» ou «o Benfica entrou atrevido no Dragão, jogámos para ganhar e podíamos ter empatado, mas não tivémos sorte». Fernando Chalana representa bem o «espírito Vieira», das «razões ocultas» e das eternas desculpas de mau pagador. Já ninguém lhes dá crédito, nem sequer os adeptos. Só eles é que não perceberam ou fingem não perceber.

Nesta vertiginosa descida do Benfica aos infernos, há alguém de quem tenho pena e que acho que o não merece de forma alguma: Rui Costa. Não apenas porque é o melhor jogador da equipa, um dos melhores em acção neste campeonato, o melhor dos benfiquistas dentro e fora de campo, mas também porque não paga tributo à estupidez, à cegueira ou à hipocrisia. Eu sei que isto, dito por um portista, até pode pôr os mais fanáticos benfiquistas a desconfiar do Rui Costa. Mas eu, se mandasse ali, mandava-os calar a todos e só o Rui Costa é que falava em nome do Benfica. Podem crer que muito do respeito e crédito perdido começava logo a ser recuperado.

2- Entretanto, o mundo pula e avança. Ou melhor, o FC Porto pula e o Vitória de Guimarães avança. O Vitória avança, com passos medidos e cautelosos, em direcção a um inimaginável segundo lugar e presença na Champions — enquanto o seu voleibol conquistou para o clube o primeiro título de campeão nacional absoluto da sua história, e o andebol conquistou a Taça de Portugal. Mas desiludam-se: o FC Porto não vai facilitar em Guimarães. Se não ganhar, terá sido por mérito do Vitória.

Porque este FC Porto está insaciável. Quer curar, e à custa de vitórias, a ferida ainda aberta da injustíssima eliminação contra o Schalke, nos oitavos-de-final da Champions. Com uma perna às costas, ganhou o seu lugar no Jamor, dia 18 de Maio, e, com a frieza e eficácia de um «serial killer», prossegue no campeonato pulverizando todas as marcas e recordes, seus e alheios. E, para os detractores que diziam que os portistas ganhavam sem jogar bem, vale a pena pensar quem mais, em Portugal, consegue jogar àquele ritmo, com aquela fantástica geometria em movimento que destroça e paralisa de terror os adversários. Se aquilo não é jogar bem, ah, mostrem-me o vosso caixote do lixo! E expliquem- -me porque andam já tantos jornalistas tão agitados a tentarem livrar-nos do Bosingwa, do Bruno Alves, do Quaresma, do Lucho e do Lisandro para a próxima época!

3- O episódio da passagem do cometa Silva pelo Bessa mostra a que ponto o Boavista bateu no fundo. Bastava olhar para senhor! Mas o desespero já é tanto que se acredita que um clube sem público e sem horizontes pode sobreviver com «investidores» da banha-da-cobra em busca de cinco minutos de telejornal. O tema merece uma reflexão muito séria, para outras núpcias.

FORA DE ESTRADA, DE CABEÇA LIMPA (15 ABRIL 2008)

Tal como a caça, as touradas ou a matança do porco, também o TT está hoje debaixo de fogo dos urbanos-depressivos bem- pensantes. É gente que acha que a natureza é o Oceanário da Parque-Expo, a Quinta Pedagógica da CML ou os aldeamentos turísticos «amigos do ambiente»

Campeonato já metido ao bolso, este fim-de-semana pude gozar por completo um dos meus prazeres ou vícios favoritos: o todo-o-terreno. Sexta, sábado e domingo, entre a lama e o pó, o frio, alguma chuva e horas de sol pelo meio, pelas Serras da Gardunha e da Estrela e ao longo do Tejo, do Zêzere e seus afluentes, corpo, cabeça e alma estiveram quase que por inteiro concentrados apenas em gozar ao máximo o 25º Raid Transportugal Accenture/Oracle. Vinte e cinco edições, das quais, se a memória me não falha, eu já fiz vinte, com esta. Em 1987, acompanhei o Clube Aventura numa Expedição Transariana — cinco semanas inesquecíveis no hoje interdito deserto argelino do Sahara, o deserto dos desertos, e então sem telemóvel, nem GPS nem rádios transmissores: bússola, cartas militares dos tempos coloniais franceses e muita fé e capacidade de resistência. Nunca antes eu tinha feito um metro que fosse fora de alcatrão. Não fazia ideia o que era guiar um monstrozinho de duas toneladas, não sabia para que servia a tracção às quatro rodas e ignorava por completo o que fossem redutoras. Mas confiaram-me um UMM, com a responsabilidade de ir até lá e trazê-lo de volta para Lisboa, e, embora o que eu tenha trazido de volta tenha sido apenas a recordação do brioso, feio e fidelíssimo carro que recebera mais de um mês antes, a verdade é que o trouxe de volta e, juntamente com ele, a paixão, jamais curada, do todo-o-terreno. E, logo nesse ano, com outro UMM emprestado, inscrevi-me no Transportugal — na época gloriosa em que a prova durava nove dias, atravessava Portugal inteiro fora de estrada, tinha ainda uma grande componente desportiva (infelizmente perdida por causa das burocracias) e nos obrigava, no final de cada dia e depois de umas dez horas ao volante, a fazer ainda de mecânicos pela noite fora. Luxos de juventude…

Eu e muitos outros — todos aqueles que acreditamos que um jeep não serve para ser exibido na cidade e estacionado ao fim-de-semana nos centros comerciais para ir às compras — devemos assim ao Cube Aventura e aos seus fundadores, José Megre e Pedro Vilas Boas, o supremo privilégio de termos podido sair fora dos caminhos batidos e descobrir um outro país deslumbrante, que é este pequeno Portugal. Não sei quantos haverá que tenham feito vinte edições do Transportugal, incluindo três das antigas, de nove dias. Talvez sejamos uns cem, talvez menos, mas o que sei é que nos podemos gabar de conhecer Portugal de lés-a-lés como ninguém mais: cruzámos todos os montes e serras, atravessámos todas as aldeias esquecidas no fim do tempo, acelerámos em todos os planaltos e planícies do sul, passámos a vau todos os rios, ribeiras e riachos do mapa, redescobrimos caminhos perdidos desde os romanos e chegámos aos cumes mais altos, de meter medo, e a paisagens e pistas de que nenhum livro fala. E tudo isso, aos saltos e solavancos, num desconforto e cansaço por vezes injustificável, mas de que retiramos sempre um prazer de crianças deslumbradas. E mais: tudo isso fez de nós condutores exímios, habituados a guiar metro a metro, a esperar sempre um buraco à saída de uma curva fechada, uma pedra escondida na trajectória do carro e de que é preciso desviar-se numa fracção de segundo, um lamaçal onde o carro não pode ficar preso, um corta-fogo a subir a pique vendo apenas o céu no horizonte, um rio a atravessar com água por cima do capot e uma correnteza que nos vai arrastar, se escolhermos mal o ponto de travessia ou se deixarmos o motor ir abaixo no meio do aperto. São doses industriais de adrenalina, de medo, muitas vezes (como no ponto mais alto da Gardunha, no meio do espectáculo surreal dos moinhos de energia eólica, com mil metros de abismo de cada lado da pista e um nevoeiro de catástrofe envolvendo tudo), mas também, e como suprema recompensa, paisagens de uma beleza de cortar a respiração, lugares inimagináveis onde o mundo parece ter começado a ser criado e reina uma harmonia absolutamente perfeita.

Obviamente, o Transportugal deve muito, muitíssimo, a quem faz o reconhecimento dos trajectos a percorrer — e hoje isso é obra de uma pequena equipa comandada pelo Orlando Romana, um alentejano tranquilo e discreto, que soube fazer de uma paixão a sua profissão. E, claro, desse «gentlemen traveller» que é o José Megre — o pioneiro da participação portuguesa no Paris-Dakar e seguramente o maior viajante de Portugal inteiro (o mundo tem 194 países registados e José Megre tem o carimbo de 192 deles. Gasta todos os dias de férias do ano a viajar sozinho, na insane tarefa de conhecer todos os países do mundo: faltam-lhe o Haiti e o Iraque, e eu troco mais uma viagem minha a Veneza ou a Marraquexe por uma viagem do Megre aos dois países que lhe faltam, porque ele bem o merece).

Tal como a caça, as touradas ou a matança do porco, também o TT está hoje debaixo de fogo dos urbanos-depressivos bem-pensantes. É gente que acha que a natureza é o Oceanário da Parque-Expo, a Quinta Pedagógica da CML ou os aldeamentos turísticos «amigos do ambiente». Acham que os jeeps destroem as plantas e os caçadores dizimam os animaizinhos. É inútil tentar explicar-lhes que, tanto o TT como a caça organizada, mantêm o equilíbrio da natureza, ensinam as pessoas a respeitá-la para poder desfrutá-la e mantêm viva a ligação do homem com o campo e o mato, sem a qual tudo se descontrolaria. Enfim, eu que já não alimento grandes esperanças na capacidade regenerativa da inteligência do ser humano, vou desfrutando enquanto posso. Talvez tenha a sorte de morrer a atravessar de jeep a ribeira de Odeleite ou a caçar uma perdiz brava na serra de Mértola, de acordo com a única religião em que acredito e que é a da natureza.

De há uns anos para cá tenho tido também a sorte de partilhar o Transportugal com um parceiro à medida do espírito da coisa. O Pedro P. é, curiosamente, um benfiquista, mas de uma espécie rara, nos tempos que correm: acima de tudo, ele gosta, e joga, futebol. Não vai, pois, em cantigas de embalar ou de enganar: olha o que vê e muitas vezes deixa deserto o seu lugar cativo no Estádio da Luz. Sexta à noite, quando estávamos a jantar em Tomar, foi ele que me comunicou que o Benfica acabara de ser humilhado pela Académica, em pleno Estádio da Luz. Disse-o com um ar tão conformado e natural, que eu nem tive coragem para comentar «deve ter sido mais um resultado viciado, como diz o brilhante gestor das frustrações benfiquistas». Até isso eu devo ao TT: a capacidade de retirar importância às pequenas misérias da vida, de, durante três dias, ser capaz de nos ajudar a pôr as coisas em perspectiva, esquecer rivalidades idiotas e querelas inúteis e devolver-nos ao essencial da vida. Dois amigos, esquecidos do mundo e partilhando um jeep, um ao volante, outro na navegação, engolindo os quilómetros de terra e a paisagem como se engole a vida — quando a vida é só deslumbramento e alegria.