quinta-feira, maio 01, 2008

FORA DE ESTRADA, DE CABEÇA LIMPA (15 ABRIL 2008)

Tal como a caça, as touradas ou a matança do porco, também o TT está hoje debaixo de fogo dos urbanos-depressivos bem- pensantes. É gente que acha que a natureza é o Oceanário da Parque-Expo, a Quinta Pedagógica da CML ou os aldeamentos turísticos «amigos do ambiente»

Campeonato já metido ao bolso, este fim-de-semana pude gozar por completo um dos meus prazeres ou vícios favoritos: o todo-o-terreno. Sexta, sábado e domingo, entre a lama e o pó, o frio, alguma chuva e horas de sol pelo meio, pelas Serras da Gardunha e da Estrela e ao longo do Tejo, do Zêzere e seus afluentes, corpo, cabeça e alma estiveram quase que por inteiro concentrados apenas em gozar ao máximo o 25º Raid Transportugal Accenture/Oracle. Vinte e cinco edições, das quais, se a memória me não falha, eu já fiz vinte, com esta. Em 1987, acompanhei o Clube Aventura numa Expedição Transariana — cinco semanas inesquecíveis no hoje interdito deserto argelino do Sahara, o deserto dos desertos, e então sem telemóvel, nem GPS nem rádios transmissores: bússola, cartas militares dos tempos coloniais franceses e muita fé e capacidade de resistência. Nunca antes eu tinha feito um metro que fosse fora de alcatrão. Não fazia ideia o que era guiar um monstrozinho de duas toneladas, não sabia para que servia a tracção às quatro rodas e ignorava por completo o que fossem redutoras. Mas confiaram-me um UMM, com a responsabilidade de ir até lá e trazê-lo de volta para Lisboa, e, embora o que eu tenha trazido de volta tenha sido apenas a recordação do brioso, feio e fidelíssimo carro que recebera mais de um mês antes, a verdade é que o trouxe de volta e, juntamente com ele, a paixão, jamais curada, do todo-o-terreno. E, logo nesse ano, com outro UMM emprestado, inscrevi-me no Transportugal — na época gloriosa em que a prova durava nove dias, atravessava Portugal inteiro fora de estrada, tinha ainda uma grande componente desportiva (infelizmente perdida por causa das burocracias) e nos obrigava, no final de cada dia e depois de umas dez horas ao volante, a fazer ainda de mecânicos pela noite fora. Luxos de juventude…

Eu e muitos outros — todos aqueles que acreditamos que um jeep não serve para ser exibido na cidade e estacionado ao fim-de-semana nos centros comerciais para ir às compras — devemos assim ao Cube Aventura e aos seus fundadores, José Megre e Pedro Vilas Boas, o supremo privilégio de termos podido sair fora dos caminhos batidos e descobrir um outro país deslumbrante, que é este pequeno Portugal. Não sei quantos haverá que tenham feito vinte edições do Transportugal, incluindo três das antigas, de nove dias. Talvez sejamos uns cem, talvez menos, mas o que sei é que nos podemos gabar de conhecer Portugal de lés-a-lés como ninguém mais: cruzámos todos os montes e serras, atravessámos todas as aldeias esquecidas no fim do tempo, acelerámos em todos os planaltos e planícies do sul, passámos a vau todos os rios, ribeiras e riachos do mapa, redescobrimos caminhos perdidos desde os romanos e chegámos aos cumes mais altos, de meter medo, e a paisagens e pistas de que nenhum livro fala. E tudo isso, aos saltos e solavancos, num desconforto e cansaço por vezes injustificável, mas de que retiramos sempre um prazer de crianças deslumbradas. E mais: tudo isso fez de nós condutores exímios, habituados a guiar metro a metro, a esperar sempre um buraco à saída de uma curva fechada, uma pedra escondida na trajectória do carro e de que é preciso desviar-se numa fracção de segundo, um lamaçal onde o carro não pode ficar preso, um corta-fogo a subir a pique vendo apenas o céu no horizonte, um rio a atravessar com água por cima do capot e uma correnteza que nos vai arrastar, se escolhermos mal o ponto de travessia ou se deixarmos o motor ir abaixo no meio do aperto. São doses industriais de adrenalina, de medo, muitas vezes (como no ponto mais alto da Gardunha, no meio do espectáculo surreal dos moinhos de energia eólica, com mil metros de abismo de cada lado da pista e um nevoeiro de catástrofe envolvendo tudo), mas também, e como suprema recompensa, paisagens de uma beleza de cortar a respiração, lugares inimagináveis onde o mundo parece ter começado a ser criado e reina uma harmonia absolutamente perfeita.

Obviamente, o Transportugal deve muito, muitíssimo, a quem faz o reconhecimento dos trajectos a percorrer — e hoje isso é obra de uma pequena equipa comandada pelo Orlando Romana, um alentejano tranquilo e discreto, que soube fazer de uma paixão a sua profissão. E, claro, desse «gentlemen traveller» que é o José Megre — o pioneiro da participação portuguesa no Paris-Dakar e seguramente o maior viajante de Portugal inteiro (o mundo tem 194 países registados e José Megre tem o carimbo de 192 deles. Gasta todos os dias de férias do ano a viajar sozinho, na insane tarefa de conhecer todos os países do mundo: faltam-lhe o Haiti e o Iraque, e eu troco mais uma viagem minha a Veneza ou a Marraquexe por uma viagem do Megre aos dois países que lhe faltam, porque ele bem o merece).

Tal como a caça, as touradas ou a matança do porco, também o TT está hoje debaixo de fogo dos urbanos-depressivos bem-pensantes. É gente que acha que a natureza é o Oceanário da Parque-Expo, a Quinta Pedagógica da CML ou os aldeamentos turísticos «amigos do ambiente». Acham que os jeeps destroem as plantas e os caçadores dizimam os animaizinhos. É inútil tentar explicar-lhes que, tanto o TT como a caça organizada, mantêm o equilíbrio da natureza, ensinam as pessoas a respeitá-la para poder desfrutá-la e mantêm viva a ligação do homem com o campo e o mato, sem a qual tudo se descontrolaria. Enfim, eu que já não alimento grandes esperanças na capacidade regenerativa da inteligência do ser humano, vou desfrutando enquanto posso. Talvez tenha a sorte de morrer a atravessar de jeep a ribeira de Odeleite ou a caçar uma perdiz brava na serra de Mértola, de acordo com a única religião em que acredito e que é a da natureza.

De há uns anos para cá tenho tido também a sorte de partilhar o Transportugal com um parceiro à medida do espírito da coisa. O Pedro P. é, curiosamente, um benfiquista, mas de uma espécie rara, nos tempos que correm: acima de tudo, ele gosta, e joga, futebol. Não vai, pois, em cantigas de embalar ou de enganar: olha o que vê e muitas vezes deixa deserto o seu lugar cativo no Estádio da Luz. Sexta à noite, quando estávamos a jantar em Tomar, foi ele que me comunicou que o Benfica acabara de ser humilhado pela Académica, em pleno Estádio da Luz. Disse-o com um ar tão conformado e natural, que eu nem tive coragem para comentar «deve ter sido mais um resultado viciado, como diz o brilhante gestor das frustrações benfiquistas». Até isso eu devo ao TT: a capacidade de retirar importância às pequenas misérias da vida, de, durante três dias, ser capaz de nos ajudar a pôr as coisas em perspectiva, esquecer rivalidades idiotas e querelas inúteis e devolver-nos ao essencial da vida. Dois amigos, esquecidos do mundo e partilhando um jeep, um ao volante, outro na navegação, engolindo os quilómetros de terra e a paisagem como se engole a vida — quando a vida é só deslumbramento e alegria.

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