sexta-feira, setembro 03, 2004

Uma questão de atitude ( 31 Agosto 2004)

Às vezes, quando vejo a facilidade com que se abespinham com as críticas estes habitantes do futebol português, pergunto-me se eles, porventura, nunca leram a imprensa desportiva dos países mais fortes futebolisticamente: a Espanha, a Itália, a Inglaterra, o Brasil

1- Francis Obikwelu deixou o País de boca aberta depois de ganhar uma impensável medalha de prata nos 100 metros dos Jogos Olímpicos de Atenas. Depois disso passeou-se nas eliminatórias dos 200 metros e, a recuperar de uma febre, bateu-se ainda por uma medalha na final mas não conseguiu melhor que um, mesmo assim brilhante, 5.º lugar. No final pediu desculpas aos portugueses por não ter alcançado a segunda medalha —ele que já tinha feito muito mais que a sua obrigação. O brasileiro Vanderlei Lima correu quase uma hora isolado na maratona. A sete quilómetros da chegada, quando lutava desesperadamente por manter o seu avanço sobre um duo perseguidor, foi derrubado por um irlandês tresloucado que, louco ou não, merecia ser açoitado e preso durante um bom par de anos. Derrubado, assustado, com o ritmo fatalmente comprometido, Vanderlei Lima levantou-se e regressou à corrida, não conseguindo evitar que os dois que o perseguiam o ultrapassassem. Mas, contrariando a lógica e as expectativas, cerrou os dentes, foi inventar novas forças e novo ânimo aos seus tempos de bóia-fria e segurou o bronze: foi, talvez, o momento mais bonito dos Jogos. No final recusou-se a responder à pergunta óbvia: se teria ganho a maratona sem a intervenção do imbecil do irlandês. Limitou-se a dizer que não queria arranjar desculpas para não ter ganho. Ninguém, em competição alguma, é obrigado a ganhar. Mas ninguém, na alta competição, no desporto profissional, está desobrigado de tentar tudo para ganhar ou, pelo menos, para se ultrapassar nos grandes momentos. É esse o espírito dos grandes desportistas.

2- Em Bruxelas o Benfica perdeu uma vez mais a possibilidade de regressar ao convívio dos grandes da Europa, na Liga dos Campeões. Uma vez mais desaproveitou a possibilidade de qualificação, que deve ao FC Porto, e desaproveitou a sorte que tem tido nos sorteios europeus (veja-se a Taça UEFA do ano passado e já a deste ano, veja-se esta eliminatória da Liga dos Campeões). O Anderlecht era, há uns anos atrás, uma boa equipa europeia mas a lei Bosman, que veio para cavar um fosso definitivo entre os clubes ricos e todos os outros, acabou com esses tempos. Hoje o Anderlecht é uma equipa pouco mais que banal e perfeitamente ao alcance do Benfica, como os primeiros 20 minutos do jogo de Bruxelas mostraram: bastaria um mínimo de talento, de lucidez e de combatividade para segurar ou ampliar a vantagem trazida de Lisboa. Em vez disso, o Benfica sucumbiu ao primeiro golpe e afundou-se por completo, só por acaso não tendo saído vergado a uma derrota por números escandalosos. Se eu fosse benfiquista terme-ia sentido humilhado e ofendido pela exibição da equipa em Bruxelas. Alguns benfiquistas também o sentiram e manifestaram-no—para além da grande falange dos que há muito já desistiram de esperar boas notícias. Mas, nestas ocasiões, há sempre quem se preste a minimizar o alcance dos falhanços e insinue que as críticas vêm de fora e são jogadas dos adversários. Viu-se agora: bastou uma feliz vitória tangencial sobre o Beira-Mar, em condições mais que favoráveis pela maciça presença de adeptos benfiquistas, para que alguns jogadores logo desatassem a sacudir as críticas injustas e até a falar já na conquista do título — como se ganhar ao Beira-Mar fosse tão fácil como ganhar o campeonato e como se ganhar ao Beira- Mar pudesse fazer esquecer a tremenda desilusão de, uma vez mais, falhar a Liga dos Campeões. O mais estranho ainda é que o próprio director do futebol benfiquista, o ex-empresário José Veiga, foi quem encabeçou as críticas aos críticos, a quem chamou «pessoas quase mortas» e a quem mandou calar nos tempos mais próximos, por virtude da extraordinária vitória alcançada... sobre o Beira-Mar! Quando isto os contenta, quando o grau de exigência interno da equipa não vai além disto e quando o exemplo vem de cima, parece-me a mim (mas devo estar morto e não o sei...) que é difícil instalar nesta equipa um espírito de vitória, de há muito perdido. Mas eles lá sabem...Também há uns anos atrás, em ocasião semelhante, Vale e Azevedo veio dizer que não era importante nem decisivo para o Benfica entrar na Liga dos Campeões. Pois se não o acham...

3- Às vezes, quando vejo a facilidade com que se abespinham com as críticas estes habitantes do futebol português, pergunto-me se eles, porventura, nunca leram a imprensa desportiva dos países mais fortes futebolisticamente: a Espanha, a Itália, a Inglaterra, o Brasil. É que lá, quando uma equipa joga mal, quando os jogadores não correm e não jogam, quando os treinadores falham, a crítica é impiedosa, não faz cerimónia perante quem é protagonista de um espectáculo público, que é pago e bem pago. Às vezes pergunto-me até se esta gente já realizou que vivemos em democracia, onde a liberdade de expressão é um direito e a crítica às profissões públicas um dever. Ou pensarão eles que a crítica de cinema, de teatro, de música, de livros, de televisão, é livre mas a do futebol deve ser condicionada a eles próprios, em circuito fechado? Lembrei-me também disso esta semana, depois de ter lido uma citação do habitual caluniador Octávio Machado, em que me chamava «moço de recados» (gostaria de saber de quem...). Ora, embora eu ache o personagem mesquinho e detestável, a verdade é que nunca o ataquei pessoalmente mas apenas o critiquei profissionalmente, tendo defendido sempre e abertamente, desde o primeiro dia e contra a direcção do meu clube, que ele não servia para treinador do FC Porto. E limitei-me, aliás, a ter razão antes de tempo, conforme os factos e os resultados vieram depois a demonstrar, forçando a direcção do clube a abreviar-lhe a estada, antes que ele desfizesse de vez a equipa. Comparando os resultados da sua passagem pelo Porto com os de José Mourinho, o mínimo que Octávio Machado poderia fazer, se tivesse consciência do ridículo, era ficar calado para sempre, em lugar de andar ciclicamente a exibir o seu ressentimento de cada vez que alguém, vá-se lá saber porquê, ache interessante ir ouvir o que tem para dizer. Como se não fosse ele que tivesse falhado notoriamente, e à vista de todos, mas sim quem criticou a sua prestação ou quem veio depois pôr a nu a sua insustentável incompetência!

4- A semana foi também decepcionante para o FC Porto, com a perda em dois anos consecutivos da Supertaça Europeia. É verdade que Victor Fernandez foi confrontado com vários problemas quase inultrapassáveis, como o pouco tempo de treino e conhecimento da equipa, as lesões de jogadores fundamentais, a falta de mais um médio (saíram o Deco, o Pedro Mendes, o Alenitchev, o Ricardo Fernandes e só entraram o Diego o Raul Meireles e o Hugo Leal), a continuada baixa de forma de um jogador decisivo como o Costinha e de todos os pontas-de-lança, simultaneamente. Mas já deu para perceber que, neste início de temporada, os pontos fortes da equipa estão no Baía, no Pepe, no Maniche, Diego, Quaresma e Carlos Alberto. O Diego estava magoado mas o Quaresma não se percebe que tenha ficado mais de uma hora no banco, preterido por um totalmente ineficaz Hugo Leal e por um4x4x2 em que os dois pontas-de-lança não tinham quem os servisse, para mais com Carlos Alberto deslocado para inglórias tarefas defensivas, ele que é um notável desequilibrador no jogo ofensivo. Apesar de todas as dificuldades conhecidas e não menosprezáveis, apesar de o Valência estar longe de ser um Anderlecht, a verdade é que a derrota deixou em todos os portistas com quem conversei um sabor de amarga frustração. Por ser a segunda vez consecutiva que falhámos a Supertaça mas também por se ter visto que a equipa sofre de um notável défice de imaginação e simplicidade de processos ofensivos, parecendo que os jogadores continuam a ter uma extraordinária capacidade de luta pela posse da bola mas depois não sabem o que fazer com ela. Enfim, salvou-se o espírito de combate, a vontade de vencer e o inconformismo perante a derrota, que são a imagem de marca desta fantástica equipa. E a verdade também é que a procissão vai no adro e nós, portistas, estamos muito mal (ou muito bem...) habituados.

5- Uma das maiores dificuldades que Victor Fernandez tem encontrado é, por paradoxal que pareça, ter uma equipa para treinar. Repare-se o que tem sido este início de temporada: cinco jogadores do Europeu apenas integraram o estágio três semanas depois dos outros; quando chegaram, partiram outros cinco para a Selecção Olímpica; regressados estes, vão partir agora outros cinco para a Selecção A (além de Seitaridis e McCarthy, para as respectivas selecções) e mais outros cinco, entre os quais Raul Meireles e Ricardo Quaresma, para os sub-21. Se a isto juntarmos os lesionados, se pensarmos que o Diego chegou após disputar a Copa América, é fácil constatar que desde que a época começou, há mais de mês e meio, não deve ter havido um só dia em que todos os jogadores tenham estado disponíveis para o clube. Ocorre perguntar se faz sentido haver tantas Selecções: sub-18, sub-20, sub-21, sub-23, olímpicos e A—já nem sei bem quantas são. Ocorre perguntar, como o presidente do COP, se faz sentido sequer que o futebol seja uma modalidade olímpica. E ocorre perguntar até quando é que os clubes vão ter de sustentar uma situação em que são obrigados a pagar ordenados a jogadores que passam grande parte do seu tempo ao serviço de uma profusão de Selecções Nacionais. É assunto a que voltarei.

O pior do futebol ( 24 Agosto 2004)

Deixemo-nos de hipocrisias e cerimónias: esta equipa do Boavista treinada por Jaime Pacheco é um caso lamentável de antijogo, verdadeiro paradigma das razões pelas quais o público se afasta dos estádios

1. No momento em que escrevo isto não sei ainda se o Derlei terá ou não de ser operado, se estará afastado dos relvados duas ou muitas semanas. Seguramente não jogará a final da Supertaça contra o Benfica nem a final da Supertaça europeia contra o Valência. A entrada assassina que sofreu do Toñito prejudica seriamente os interesses do clube que lhe paga e os do próprio jogador – que é um exemplo de combatividade, espírito de sacrifício e lealdade, que torna ainda mais chocante o acto de que foi vítima. Se o Conselho de Disciplina da Liga não existisse quase só para perseguir o FC Porto e proteger o Boavista, o mínimo – repito, o mínimo – que sucederia ao Toñito era o que sucedeu ao Paulinho Santos, quando partiu o nariz ao João Pinto: ficar de fora até que o Derlei regresse em pleno. Quando soube que o FC Porto iria deslocar-se ao Bessa para um «jogo amigável» fiquei logo apreensivo e achei demasiado temerária a atitude da direcção portista de aceitar tal jogo: sabendo nós como joga o Boavista de Jaime Pacheco, tudo o que vá para além dos jogos oficiais, de onde se não pode fugir, é um risco a evitar. E, mal o jogo começou, eu bati três vezes na madeira, desejando que nenhum jogador do FC Porto saísse dali lesionado, aumentando ainda o impressionante rol de baixas para o jogo com o Benfica, na próxima sexta-feira. Infelizmente, a sorte não ajudou e sucedeu aquilo que é o mais normal suceder contra esta equipa do Boavista. E porquê? Porque, deixemo-nos de hipocrisias e cerimónias, esta equipa do Boavista treinada por Jaime Pacheco é um caso lamentável de antijogo, verdadeiro paradigma das razões pelas quais o público se afasta dos estádios. Quando o Boavista de Pacheco foi campeão, eu escrevi isto mesmo – ainda bem para o clube, que já o merecia, ainda mal para o futebol, que o não merecia. Mas, como o Campeonato foi ganho ao FC Porto, o inimigo público do resto do país, toda a gente se desfez em elogios. Criaram um monstro e agora ninguém o segura. Mas, se eles cometerem o erro de partir uma perna ao Mantorras ou ao Liedson, então vão ficar todos indignados. O Campeonato está à porta e porque, segundo afirma o próprio, é este o Boavista que Pacheco quer, é assim que ele gosta das equipas e entende o futebol, não há lugar a pensar que o que se passou anteontem no Bessa foi um acidente de percurso e não o início do percurso que se pretende. E, como a opinião é livre, quer de um lado quer do outro, vou dizer o que penso sobre o «futebol» deste Boavista de Jaime Pacheco: a) O Boavista de Jaime Pacheco não joga nem pretende jogar futebol: pretende apenas evitar que os adversários joguem; b) Para isso, vale tudo, rigorosamente tudo, o que os árbitros, como esse lamentável Paulo Costa, lhe consentem: rasteiras, cotoveladas, socos, pontapés por trás, faltas constantes e sistemáticas a meio-campo para evitar a organização ofensiva do adversário, insultos, intimidações, perdas de tempo, tudo menos assumir o risco de querer jogar futebol; c) O Boavista não joga para marcar golos, mas apenas para os evitar. O zero-zero é um grande resultado, o 1-0 uma goleada; d) Por isso, nenhum jogo onde intervenha o Boavista, particularmente se disputado no Bessa, pode ser um bom jogo de futebol. Porque o adversário é inibido e impedido de jogar, os seus jogadores mais criativos são implacavelmente massacrados e todo o seu jogo construtivo é destruído à nascença pelo recurso sistemático à falta, que corta jogo, desgasta fisicamente e desmoraliza. Quando joga o Boavista, não há golos, não há oportunidades de golo, não há jogadas levadas do princípio ao fim sem faltas. Há, em contrapartida, interrupções constantes, cartões sem fim, uma média de faltas superior a minuto e meio, um tempo útil de jogo que nunca chega aos cinquenta por cento, violência, «sururus», agressões, expulsões – normalmente, e por ironia absoluta, dos adversários. Por alguma razão Jaime Pacheco não se aguentou mais do que um trimestre em Maiorca: porque os espanhóis gostam de ver futebol e por isso é que têm os estádios cheios, enquanto o Bessa está sempre às moscas; e) Mas o pouco público boavisteiro que vai ao Bessa merece inteiramente a equipa que tem e o futebol que vê: são eles, como ainda se constatou no jogo de ontem, que, ao verem um jogador da casa perseguir um adversário, gritam lá para dentro «dá-lhe, dá-lhe!». Este público, que não se importa que a equipa desdenhe do espectáculo e do jogo, que enxovalhe o nome do clube à vista do país na televisão, é o pior público do futebol: aquele que não vai lá por gostar de futebol, mas porque tem contas a ajustar coma vida ou problemas do foro psicológico que acham poder resolver assim; f) Curiosamente, quando o Boavista joga para as competições europeias, tudo muda de figura. Os jogadores sabem que não podem contar aí com a protecção dos árbitros a que estão habituados cá dentro e acontece-lhes até terem de jogar futebol e jogarem bem; g) O que prova que o futebol arruaceiro e caceteiro do Boavista não acontece por acaso, mas por uma atitude deliberada, ensaiada, treinada e incentivada. E por quem? Obviamente por Jaime Pacheco, que ainda anteontem, depois de mais uma entrada a «varrer» de um tal André Barreto sobre um adversário, batia palmas na lateral. Manifestamente, Jaime Pacheco deveria optar antes por ser treinador de kung-fu, kick-boxing ou wrestling. De futebol é que não. Ele faz mal ao futebol, causa danos, desrespeita o jogo, o público, os adversários. Um treinador que tivesse o mínimo de respeito pelo jogo e pelos jogadores, teria tirado o Toñito de campo logo após a sua entrada sobre o Derlei; h) Se observarem com atenção, verão que a estratégia de sarrafada do Boavista não é aleatória nem ao sabor dos acontecimentos. Pelo contrário, obedece a um plano e é ela que comanda e desencadeia os acontecimentos. Os objectivos principais são impedir o jogo do adversário, intimidar e diminuir fisicamente os seus principais jogadores, enervá-los e arrastá-los para o mesmo clima de violência e nervos à flor da pele, onde a superioridade futebolística se perde por completo. Desta estratégia decorrem algumas variantes «tácticas». Por exemplo, não começam todos a distribuir pancada ao mesmo tempo: são seleccionados um ou dois, que fazem as despesas iniciais até levarem finalmente um amarelo; aí, transformam-se em cordeirinhos e avançam outros que os substituem e assim sucessivamente. Outra variante táctica manda que os jogadores do Boavista comecem a distribuir pancada logo desde o minuto inicial e sabendo que contam com a complacência dos árbitros portugueses, que acham que os cartões não são para mostrar no início. Quando, após uma meia-hora de jogo a levar pancada sem reacção do árbitro, o adversário se enerva e começa a responder na mesma moeda, então, como que por milagre, o árbitro desperta e começa a sacar dos cartões... para o adversário. A história dos Boavista-FC Porto dos últimos anos está repleta de episódios destes. Eis a equipa do Boavista que se apresenta para disputar o próximo Campeonato. Continuem a protegê-la mas depois não venham lamentar-se de que os espectáculos são deploráveis e que não há público nos estádios.
2. O pior do futebol português esteve também presente na prestação da Selecção Olímpica contra o Iraque. Não foi só o jogo displicente, o ar de turistas em férias, a bandalheira táctica da equipa. Foi a cultura da «cotovelada», o esforço trocado pela violência gratuita, o tom de meninos mimados que não sabem ganhar nem perder. Parece que ninguém lhes explicou que estavam nuns Jogos Olímpicos. Se fosse eu a mandar, tinha-os mandado para casa imediatamente. Não há medalha que possa valer aquela vergonha. Mas este é o país onde o Amoreirinha passou impune depois de fazer o que fez em Toulon...

3. Nestas duas semanas de férias, das coisas que mais me divertiu foi ver o desespero dos articulistas do Benfica e Sporting perante o despedimento de Del Neri. Eles já afiavam o dente de contentes, ao verem, como todos víamos, que o pobre italiano da mochila tinha conseguido em menos de um mês dar cabo do trabalho de dois anos e meio e prometia continuar, se ninguém o agarrasse. Quando Pinto da Costa o mandou de volta para casa, choveram os artigos moralistas, a dizer que isso não se faz, olha que arrogância, que prepotência! Houve até quem escrevesse contra o «dócil rebanho portista», que, habituado à subserviência, já nem ousava levantar um suspiro contra as decisões prepotentes do «papa» – fingindo não perceber que o que sucedeu foi justamente o contrário: o «papa» é que escutou a vontade e a sabedoria do povo portista. Como não se conseguia destruir de fora e em campo aberto aquela equipa que mandou na Europa nos últimos dois anos, havia a fundada esperança de a ver implodir por dentro. Esteve próximo, mas falhou. Desculpem lá. Mas numa coisa eles têm razão: está por explicar como e porquê Pinto da Costa foi inventar este lírico italiano. Sendo certo que erros destes todos cometemos – senão não haveria despedimentos nem divórcios... – um erro tão evidente e tão previsível dá que pensar. Por exemplo, que a pressa é má conselheira.

Espírito olímpico (17 Agosto 2004)

Que haja alguma noção de decência e decoro: a Selecção olímpica que esteve em Atenas não merece receber qualquer prémio. Merece, quanto muito, pagar multa. Para que não se ande a criar toda uma geração de atletas para quem a derrota é banal e a vitória é uma oportunidade para reclamar privilégios

1 Foi preciso um português nascido naNigéria—oumelhor, umnigeriano naturalizado português—para que a participação olímpica portuguesame despertasse algum entusiasmo. Francis Obikwelu não apenas conquistou uma brilhante e impensável medalha de prata nos 100 metros como ainda destoou, pela atitude, da quase totalidade da nossa delegação olímpica: a ele não lhe ouvimos desculpas esfarrapadas, queixas de falta de apoios, reclamações contra a organização, as instalações ou os próprios Jogos. Foi lá para tentar o melhor e concentrou- se apenas nisso.Teve vontade e orgulho de ganhar, ao contrário de outros que encararam as derrotas e eliminações sumárias quase como uma fatalidade para que o País deve estar preparado, ao ponto de ter eu ouvidoumatleta, instantaneamente eliminado, desabafar: «É bom perder!»

A proeza de Obikwelu torna-se assim ainda mais notável pelo valor de excepção que a sua atitude competitiva teve. É verdade que não foi o único, mas quase o único. É verdade também que antes tinha havido a surpresa da medalha de prata de Sérgio Paulinho mas eu, no que respeita ao ciclismo, desculpem lá, há muito que deixei de acreditar. Há o Lance Armstrong, cuja história pessoal e desportiva o torna motivo de admiração em todo o Mundo, e o resto, quanto a mim, é para duvidar. O longo e interminável historial de doping no ciclismo tornou a modalidade desacreditada. A meus olhos, pelo menos. Aliás, omesmo vai acontecendo um pouco com os Jogos Olímpicos e, em especial, com esta edição de Atenas. São já demasiados os casos de doping detectados (apesar da sofisticação dos meios utilizados para o seu encobrimento), demasiadas batotas, demasiadas dúvidas e desconfianças. Mesmo nos casos aparentemente limpos e sem mácula, nós olhamos para os atletas e dá que pensar: ginastas que não passam de meninas na puberdade e que tiram vantagem do seu ínfimo peso e tamanho, mulheres de outras modalidades que são homens autênticos, corpos estranhos embrulhados em estranhos fatos de competição (por exemplo, reparei que os saltadores para a água desenvolveram agora um estranho músculo lateral, ao nível do peito, que eu nem sabia que existia...). Grande parte daquilo parece-me muito pouco natural, muito pouco desportivo, nada olímpico.

2 No que respeita à nossa participação em Atenas, se o melhor foi até agora a corrida de Obikwelu nos 100 metros, o pior, o insustentável, foi, obviamente, a prestação da Selecção olímpica de futebol. Gostaria de saber se também neste caso a Federação vai pagar prémios de presença e prémios de jogos. É que muita gente esquece-se de que os jogadores de futebol, ao serviço de qualquer Selecção Nacional, se é verdade que em alguns casos acumulam desgaste competitivo, também é verdade que em todos os casos acumulam benefícios financeiros com essa participação: mantêm por inteiro o ordenado que lhes é pago pelos clubes e recebem ainda as diárias e prémios que a Federação lhes paga.

Ora, o que é extraordinário é que parece que estes prémios de jogos são devidos independentemente do resultado final das competições. Foi assim que fiquei a saber, por uma recente entrevista de Gilberto Madail ao Expresso, que a Selecção Nacional que esteve no Mundial da Coreia-Japão, e onde obteve resultados desportivos lastimáveis a par de um deplorável comportamento disciplinar que já se vem tornando imagem demarca do nosso futebol, teve direito a prémios (prémios de quê, perguntaremos todos nós). Mais extraordinário ainda, o presidente da Federação confessa que não desistiu, dois anos depois, de se bater junto doGoverno para que esses prémios — à semelhança dos do Euro-2004—sejam isentos de impostos. A persistência dessa batalha indicia que os ditos prémios não devem ser assim tão pequenos para que jogadores tão bem pagos façam questão de insistir emos receber livres de impostos. Notável, para todos os efeitos, é a explicação que Madail dá para essa pretensão dos jogadores, que ele apadrinha: os jogadores da Selecção, diz ele, estiveram ao serviço do «interesse nacional», e tanto assim que o Presidente da República condecorou os do Euro. Ora, se os condecorou é porque eles serviram o País e se o serviram, conclui o presidente federativo, não lhes é devida a cobrança de impostos.

Portanto: ordenados+prémios de participação+prémios de jogos+ isenção de impostos. Eis o estatuto defendido pelo presidente da Federação de futebol para os jogadores das Selecções Nacionais. Cabe perguntar se Madail também acha que todos os portugueses que em todas as outras actividades, regular ou excepcionalmente, servem o seu país devem beneficiar de idêntico estatuto ou se acha que ele deve ser exclusivo dos futebolistas e porquê. E cabe também perguntar a Madail, uma vez que ele acha que cidadãos que ganham largos milhares de contos por mês devem ficar isentos de impostos relativos a receitas extraordinárias, quem acha ele que deve pagar impostos neste país. Finalmente, gostava de perguntar, uma vez que o «interesse nacional » justifica que os jogadores de futebol das Selecções recebam prémios mesmo em caso de derrota e de eliminações e se ainda devem receber tais prémios sem impostos, onde fica então o amor à pátria, o desvelo pela bandeira e tudo o resto que nos andaram a apregoar no passado mês de Junho. Quem não seria exaltado patriota nestas condições? Que haja alguma noção de decência e decoro: a Selecção olímpica que esteve emAtenas nãomerece receber qualquer prémio. Merece, quanto muito, pagar multa. Para que não se ande a criar toda uma geração de atletas para quem a derrota é banal e a vitória é umaoportunidade para reclamar privilégios face à lei e ao comum dos cidadãos.

3 Espero que a história do fungo que atacou súbita e fulminantemente a relva do renovado Municipal de Coimbra não seja um prenúncio do que nos espera relativamente ao novos estádios financiados pelas autarquias: elefantes brancos cuja manutenção fica a cargo das disponibilidades financeiras das autarquias, sem nenhuma obrigação para os clubes utilizadores, queem alguns casos, como Braga ou Aveiro, ainda ficaram com o direito de receberem uma verba das autarquias... para jogarem nos novos estádios!

Seja como for, o fungo foi uma vergonha que, se houvesse pudor, teria justificado que o dinheiro dos bilhetes fosse devolvido aos espectadores no final do jogo. E se alguma coisa se salvou ainda foi a entrega e o profissionalismo dos jogadores de Benfica e Porto, dando o seu melhor naquelas condições.

Quanto ao jogo em si, o Benfica confirmou a minha opinião de que tem um futebol mais organizado, mais determinado e mais combativo que na época passada. Acho que vai conseguir passar o Anderlecht e entrar na Liga dos Campeões, conforme o clube tanto precisa. Quanto ao FC Porto, confirmou os danos causados por uma mês de planeada desorganização do seu futebol, levada a cabo pelo desastrado Del Neri, e a única coisa que parece ter permanecido intocável foi o seu espírito de luta e o seu vício de vencer. Infelizmente, para agravar uma situação caótica de começo de época, em que, com as Selecções, as lesões e os castigos, não deve ter ensaiado uma única vez o onze teoricamente titular, trouxe de Coimbra, além da Taça, a lesão catastrófica do Diego. E, embora não haja ponta de comparação entre a entrada dura do Paulo Almeida sobre o Diego e a entrada má e violenta do Toñito sobre o Derlei, a verdade é que, em dois jogos contra equipas nacionais, o FC Porto saiu com dois dos seus jogadores mais criativos arrumados para uns dois meses, cada. Esperemos que não seja uma antevisão do que aí vem e que ao treinador nada mais reste que optar entre deixar de fora alguns dos melhores jogadores em jogos considerados de risco ou confiar nos árbitros portugueses para protegerem os jogadores mais criativos e o futebol-espectáculo.Éque a primeira opção desvirtua a capacidade de concorrência dos campeões nacionais e europeus por razões antidesportivas e da segunda nada há a esperar.