Às vezes, quando vejo a facilidade com que se abespinham com as críticas estes habitantes do futebol português, pergunto-me se eles, porventura, nunca leram a imprensa desportiva dos países mais fortes futebolisticamente: a Espanha, a Itália, a Inglaterra, o Brasil
1- Francis Obikwelu deixou o País de boca aberta depois de ganhar uma impensável medalha de prata nos 100 metros dos Jogos Olímpicos de Atenas. Depois disso passeou-se nas eliminatórias dos 200 metros e, a recuperar de uma febre, bateu-se ainda por uma medalha na final mas não conseguiu melhor que um, mesmo assim brilhante, 5.º lugar. No final pediu desculpas aos portugueses por não ter alcançado a segunda medalha —ele que já tinha feito muito mais que a sua obrigação. O brasileiro Vanderlei Lima correu quase uma hora isolado na maratona. A sete quilómetros da chegada, quando lutava desesperadamente por manter o seu avanço sobre um duo perseguidor, foi derrubado por um irlandês tresloucado que, louco ou não, merecia ser açoitado e preso durante um bom par de anos. Derrubado, assustado, com o ritmo fatalmente comprometido, Vanderlei Lima levantou-se e regressou à corrida, não conseguindo evitar que os dois que o perseguiam o ultrapassassem. Mas, contrariando a lógica e as expectativas, cerrou os dentes, foi inventar novas forças e novo ânimo aos seus tempos de bóia-fria e segurou o bronze: foi, talvez, o momento mais bonito dos Jogos. No final recusou-se a responder à pergunta óbvia: se teria ganho a maratona sem a intervenção do imbecil do irlandês. Limitou-se a dizer que não queria arranjar desculpas para não ter ganho. Ninguém, em competição alguma, é obrigado a ganhar. Mas ninguém, na alta competição, no desporto profissional, está desobrigado de tentar tudo para ganhar ou, pelo menos, para se ultrapassar nos grandes momentos. É esse o espírito dos grandes desportistas.
2- Em Bruxelas o Benfica perdeu uma vez mais a possibilidade de regressar ao convívio dos grandes da Europa, na Liga dos Campeões. Uma vez mais desaproveitou a possibilidade de qualificação, que deve ao FC Porto, e desaproveitou a sorte que tem tido nos sorteios europeus (veja-se a Taça UEFA do ano passado e já a deste ano, veja-se esta eliminatória da Liga dos Campeões). O Anderlecht era, há uns anos atrás, uma boa equipa europeia mas a lei Bosman, que veio para cavar um fosso definitivo entre os clubes ricos e todos os outros, acabou com esses tempos. Hoje o Anderlecht é uma equipa pouco mais que banal e perfeitamente ao alcance do Benfica, como os primeiros 20 minutos do jogo de Bruxelas mostraram: bastaria um mínimo de talento, de lucidez e de combatividade para segurar ou ampliar a vantagem trazida de Lisboa. Em vez disso, o Benfica sucumbiu ao primeiro golpe e afundou-se por completo, só por acaso não tendo saído vergado a uma derrota por números escandalosos. Se eu fosse benfiquista terme-ia sentido humilhado e ofendido pela exibição da equipa em Bruxelas. Alguns benfiquistas também o sentiram e manifestaram-no—para além da grande falange dos que há muito já desistiram de esperar boas notícias. Mas, nestas ocasiões, há sempre quem se preste a minimizar o alcance dos falhanços e insinue que as críticas vêm de fora e são jogadas dos adversários. Viu-se agora: bastou uma feliz vitória tangencial sobre o Beira-Mar, em condições mais que favoráveis pela maciça presença de adeptos benfiquistas, para que alguns jogadores logo desatassem a sacudir as críticas injustas e até a falar já na conquista do título — como se ganhar ao Beira-Mar fosse tão fácil como ganhar o campeonato e como se ganhar ao Beira- Mar pudesse fazer esquecer a tremenda desilusão de, uma vez mais, falhar a Liga dos Campeões. O mais estranho ainda é que o próprio director do futebol benfiquista, o ex-empresário José Veiga, foi quem encabeçou as críticas aos críticos, a quem chamou «pessoas quase mortas» e a quem mandou calar nos tempos mais próximos, por virtude da extraordinária vitória alcançada... sobre o Beira-Mar! Quando isto os contenta, quando o grau de exigência interno da equipa não vai além disto e quando o exemplo vem de cima, parece-me a mim (mas devo estar morto e não o sei...) que é difícil instalar nesta equipa um espírito de vitória, de há muito perdido. Mas eles lá sabem...Também há uns anos atrás, em ocasião semelhante, Vale e Azevedo veio dizer que não era importante nem decisivo para o Benfica entrar na Liga dos Campeões. Pois se não o acham...
3- Às vezes, quando vejo a facilidade com que se abespinham com as críticas estes habitantes do futebol português, pergunto-me se eles, porventura, nunca leram a imprensa desportiva dos países mais fortes futebolisticamente: a Espanha, a Itália, a Inglaterra, o Brasil. É que lá, quando uma equipa joga mal, quando os jogadores não correm e não jogam, quando os treinadores falham, a crítica é impiedosa, não faz cerimónia perante quem é protagonista de um espectáculo público, que é pago e bem pago. Às vezes pergunto-me até se esta gente já realizou que vivemos em democracia, onde a liberdade de expressão é um direito e a crítica às profissões públicas um dever. Ou pensarão eles que a crítica de cinema, de teatro, de música, de livros, de televisão, é livre mas a do futebol deve ser condicionada a eles próprios, em circuito fechado? Lembrei-me também disso esta semana, depois de ter lido uma citação do habitual caluniador Octávio Machado, em que me chamava «moço de recados» (gostaria de saber de quem...). Ora, embora eu ache o personagem mesquinho e detestável, a verdade é que nunca o ataquei pessoalmente mas apenas o critiquei profissionalmente, tendo defendido sempre e abertamente, desde o primeiro dia e contra a direcção do meu clube, que ele não servia para treinador do FC Porto. E limitei-me, aliás, a ter razão antes de tempo, conforme os factos e os resultados vieram depois a demonstrar, forçando a direcção do clube a abreviar-lhe a estada, antes que ele desfizesse de vez a equipa. Comparando os resultados da sua passagem pelo Porto com os de José Mourinho, o mínimo que Octávio Machado poderia fazer, se tivesse consciência do ridículo, era ficar calado para sempre, em lugar de andar ciclicamente a exibir o seu ressentimento de cada vez que alguém, vá-se lá saber porquê, ache interessante ir ouvir o que tem para dizer. Como se não fosse ele que tivesse falhado notoriamente, e à vista de todos, mas sim quem criticou a sua prestação ou quem veio depois pôr a nu a sua insustentável incompetência!
4- A semana foi também decepcionante para o FC Porto, com a perda em dois anos consecutivos da Supertaça Europeia. É verdade que Victor Fernandez foi confrontado com vários problemas quase inultrapassáveis, como o pouco tempo de treino e conhecimento da equipa, as lesões de jogadores fundamentais, a falta de mais um médio (saíram o Deco, o Pedro Mendes, o Alenitchev, o Ricardo Fernandes e só entraram o Diego o Raul Meireles e o Hugo Leal), a continuada baixa de forma de um jogador decisivo como o Costinha e de todos os pontas-de-lança, simultaneamente. Mas já deu para perceber que, neste início de temporada, os pontos fortes da equipa estão no Baía, no Pepe, no Maniche, Diego, Quaresma e Carlos Alberto. O Diego estava magoado mas o Quaresma não se percebe que tenha ficado mais de uma hora no banco, preterido por um totalmente ineficaz Hugo Leal e por um4x4x2 em que os dois pontas-de-lança não tinham quem os servisse, para mais com Carlos Alberto deslocado para inglórias tarefas defensivas, ele que é um notável desequilibrador no jogo ofensivo. Apesar de todas as dificuldades conhecidas e não menosprezáveis, apesar de o Valência estar longe de ser um Anderlecht, a verdade é que a derrota deixou em todos os portistas com quem conversei um sabor de amarga frustração. Por ser a segunda vez consecutiva que falhámos a Supertaça mas também por se ter visto que a equipa sofre de um notável défice de imaginação e simplicidade de processos ofensivos, parecendo que os jogadores continuam a ter uma extraordinária capacidade de luta pela posse da bola mas depois não sabem o que fazer com ela. Enfim, salvou-se o espírito de combate, a vontade de vencer e o inconformismo perante a derrota, que são a imagem de marca desta fantástica equipa. E a verdade também é que a procissão vai no adro e nós, portistas, estamos muito mal (ou muito bem...) habituados.
5- Uma das maiores dificuldades que Victor Fernandez tem encontrado é, por paradoxal que pareça, ter uma equipa para treinar. Repare-se o que tem sido este início de temporada: cinco jogadores do Europeu apenas integraram o estágio três semanas depois dos outros; quando chegaram, partiram outros cinco para a Selecção Olímpica; regressados estes, vão partir agora outros cinco para a Selecção A (além de Seitaridis e McCarthy, para as respectivas selecções) e mais outros cinco, entre os quais Raul Meireles e Ricardo Quaresma, para os sub-21. Se a isto juntarmos os lesionados, se pensarmos que o Diego chegou após disputar a Copa América, é fácil constatar que desde que a época começou, há mais de mês e meio, não deve ter havido um só dia em que todos os jogadores tenham estado disponíveis para o clube. Ocorre perguntar se faz sentido haver tantas Selecções: sub-18, sub-20, sub-21, sub-23, olímpicos e A—já nem sei bem quantas são. Ocorre perguntar, como o presidente do COP, se faz sentido sequer que o futebol seja uma modalidade olímpica. E ocorre perguntar até quando é que os clubes vão ter de sustentar uma situação em que são obrigados a pagar ordenados a jogadores que passam grande parte do seu tempo ao serviço de uma profusão de Selecções Nacionais. É assunto a que voltarei.
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