sexta-feira, setembro 03, 2004

Espírito olímpico (17 Agosto 2004)

Que haja alguma noção de decência e decoro: a Selecção olímpica que esteve em Atenas não merece receber qualquer prémio. Merece, quanto muito, pagar multa. Para que não se ande a criar toda uma geração de atletas para quem a derrota é banal e a vitória é uma oportunidade para reclamar privilégios

1 Foi preciso um português nascido naNigéria—oumelhor, umnigeriano naturalizado português—para que a participação olímpica portuguesame despertasse algum entusiasmo. Francis Obikwelu não apenas conquistou uma brilhante e impensável medalha de prata nos 100 metros como ainda destoou, pela atitude, da quase totalidade da nossa delegação olímpica: a ele não lhe ouvimos desculpas esfarrapadas, queixas de falta de apoios, reclamações contra a organização, as instalações ou os próprios Jogos. Foi lá para tentar o melhor e concentrou- se apenas nisso.Teve vontade e orgulho de ganhar, ao contrário de outros que encararam as derrotas e eliminações sumárias quase como uma fatalidade para que o País deve estar preparado, ao ponto de ter eu ouvidoumatleta, instantaneamente eliminado, desabafar: «É bom perder!»

A proeza de Obikwelu torna-se assim ainda mais notável pelo valor de excepção que a sua atitude competitiva teve. É verdade que não foi o único, mas quase o único. É verdade também que antes tinha havido a surpresa da medalha de prata de Sérgio Paulinho mas eu, no que respeita ao ciclismo, desculpem lá, há muito que deixei de acreditar. Há o Lance Armstrong, cuja história pessoal e desportiva o torna motivo de admiração em todo o Mundo, e o resto, quanto a mim, é para duvidar. O longo e interminável historial de doping no ciclismo tornou a modalidade desacreditada. A meus olhos, pelo menos. Aliás, omesmo vai acontecendo um pouco com os Jogos Olímpicos e, em especial, com esta edição de Atenas. São já demasiados os casos de doping detectados (apesar da sofisticação dos meios utilizados para o seu encobrimento), demasiadas batotas, demasiadas dúvidas e desconfianças. Mesmo nos casos aparentemente limpos e sem mácula, nós olhamos para os atletas e dá que pensar: ginastas que não passam de meninas na puberdade e que tiram vantagem do seu ínfimo peso e tamanho, mulheres de outras modalidades que são homens autênticos, corpos estranhos embrulhados em estranhos fatos de competição (por exemplo, reparei que os saltadores para a água desenvolveram agora um estranho músculo lateral, ao nível do peito, que eu nem sabia que existia...). Grande parte daquilo parece-me muito pouco natural, muito pouco desportivo, nada olímpico.

2 No que respeita à nossa participação em Atenas, se o melhor foi até agora a corrida de Obikwelu nos 100 metros, o pior, o insustentável, foi, obviamente, a prestação da Selecção olímpica de futebol. Gostaria de saber se também neste caso a Federação vai pagar prémios de presença e prémios de jogos. É que muita gente esquece-se de que os jogadores de futebol, ao serviço de qualquer Selecção Nacional, se é verdade que em alguns casos acumulam desgaste competitivo, também é verdade que em todos os casos acumulam benefícios financeiros com essa participação: mantêm por inteiro o ordenado que lhes é pago pelos clubes e recebem ainda as diárias e prémios que a Federação lhes paga.

Ora, o que é extraordinário é que parece que estes prémios de jogos são devidos independentemente do resultado final das competições. Foi assim que fiquei a saber, por uma recente entrevista de Gilberto Madail ao Expresso, que a Selecção Nacional que esteve no Mundial da Coreia-Japão, e onde obteve resultados desportivos lastimáveis a par de um deplorável comportamento disciplinar que já se vem tornando imagem demarca do nosso futebol, teve direito a prémios (prémios de quê, perguntaremos todos nós). Mais extraordinário ainda, o presidente da Federação confessa que não desistiu, dois anos depois, de se bater junto doGoverno para que esses prémios — à semelhança dos do Euro-2004—sejam isentos de impostos. A persistência dessa batalha indicia que os ditos prémios não devem ser assim tão pequenos para que jogadores tão bem pagos façam questão de insistir emos receber livres de impostos. Notável, para todos os efeitos, é a explicação que Madail dá para essa pretensão dos jogadores, que ele apadrinha: os jogadores da Selecção, diz ele, estiveram ao serviço do «interesse nacional», e tanto assim que o Presidente da República condecorou os do Euro. Ora, se os condecorou é porque eles serviram o País e se o serviram, conclui o presidente federativo, não lhes é devida a cobrança de impostos.

Portanto: ordenados+prémios de participação+prémios de jogos+ isenção de impostos. Eis o estatuto defendido pelo presidente da Federação de futebol para os jogadores das Selecções Nacionais. Cabe perguntar se Madail também acha que todos os portugueses que em todas as outras actividades, regular ou excepcionalmente, servem o seu país devem beneficiar de idêntico estatuto ou se acha que ele deve ser exclusivo dos futebolistas e porquê. E cabe também perguntar a Madail, uma vez que ele acha que cidadãos que ganham largos milhares de contos por mês devem ficar isentos de impostos relativos a receitas extraordinárias, quem acha ele que deve pagar impostos neste país. Finalmente, gostava de perguntar, uma vez que o «interesse nacional » justifica que os jogadores de futebol das Selecções recebam prémios mesmo em caso de derrota e de eliminações e se ainda devem receber tais prémios sem impostos, onde fica então o amor à pátria, o desvelo pela bandeira e tudo o resto que nos andaram a apregoar no passado mês de Junho. Quem não seria exaltado patriota nestas condições? Que haja alguma noção de decência e decoro: a Selecção olímpica que esteve emAtenas nãomerece receber qualquer prémio. Merece, quanto muito, pagar multa. Para que não se ande a criar toda uma geração de atletas para quem a derrota é banal e a vitória é umaoportunidade para reclamar privilégios face à lei e ao comum dos cidadãos.

3 Espero que a história do fungo que atacou súbita e fulminantemente a relva do renovado Municipal de Coimbra não seja um prenúncio do que nos espera relativamente ao novos estádios financiados pelas autarquias: elefantes brancos cuja manutenção fica a cargo das disponibilidades financeiras das autarquias, sem nenhuma obrigação para os clubes utilizadores, queem alguns casos, como Braga ou Aveiro, ainda ficaram com o direito de receberem uma verba das autarquias... para jogarem nos novos estádios!

Seja como for, o fungo foi uma vergonha que, se houvesse pudor, teria justificado que o dinheiro dos bilhetes fosse devolvido aos espectadores no final do jogo. E se alguma coisa se salvou ainda foi a entrega e o profissionalismo dos jogadores de Benfica e Porto, dando o seu melhor naquelas condições.

Quanto ao jogo em si, o Benfica confirmou a minha opinião de que tem um futebol mais organizado, mais determinado e mais combativo que na época passada. Acho que vai conseguir passar o Anderlecht e entrar na Liga dos Campeões, conforme o clube tanto precisa. Quanto ao FC Porto, confirmou os danos causados por uma mês de planeada desorganização do seu futebol, levada a cabo pelo desastrado Del Neri, e a única coisa que parece ter permanecido intocável foi o seu espírito de luta e o seu vício de vencer. Infelizmente, para agravar uma situação caótica de começo de época, em que, com as Selecções, as lesões e os castigos, não deve ter ensaiado uma única vez o onze teoricamente titular, trouxe de Coimbra, além da Taça, a lesão catastrófica do Diego. E, embora não haja ponta de comparação entre a entrada dura do Paulo Almeida sobre o Diego e a entrada má e violenta do Toñito sobre o Derlei, a verdade é que, em dois jogos contra equipas nacionais, o FC Porto saiu com dois dos seus jogadores mais criativos arrumados para uns dois meses, cada. Esperemos que não seja uma antevisão do que aí vem e que ao treinador nada mais reste que optar entre deixar de fora alguns dos melhores jogadores em jogos considerados de risco ou confiar nos árbitros portugueses para protegerem os jogadores mais criativos e o futebol-espectáculo.Éque a primeira opção desvirtua a capacidade de concorrência dos campeões nacionais e europeus por razões antidesportivas e da segunda nada há a esperar.

Sem comentários: