quarta-feira, dezembro 10, 2003

Um azul que cega ( 9-12-2003)

1. Como era esperado, o Conselho de Justiça (CJ) reduziu de três para dois jogos a pena aplicada a Deco pelo Conselho de Disciplina (CD). Tem sido invariavelmente assim de cada vez que o CD da Liga castiga um jogador do FC Porto para além da medida da pena prevista no Regulamento Disciplinar. O que desta vez aconteceu de diferente é que a decisão do recurso interposto pelo clube ainda veio a tempo de impedir que o Deco cumprisse o castigo inicial por inteiro, permitindo que a justiça fosse reposta. Mas a forma sistemática com que o CJ corrige para baixo e para os limites normais previstos na legislação os castigos aplicados por excesso a jogadores do FC Porto por parte do CD é a demonstração cabal de que, quando toca ao azul e branco, o CD não julga com justiça nem com equilíbrio mas com uma sanha persecutória que não encontra acolhimento na legislação nem cobertura na instância superior. E, depois de isto se repetir duas, três, cinco vezes, começa a ser uma vergonha indisfarçável. Nenhum juiz que se preze, e que se preocupe com a sua classificação interna para efeitos de carreira, gosta de ver as suas decisões sistematicamente corrigidas, e sempre no mesmo sentido, pelos tribunais superiores. Se os juízes do CD não se preocupam com isso, como os factos demonstram, é porque ali não jogam carreira alguma e o seu brio profissional de julgadores é ofuscado pela cegueira que os atinge quando têm de julgar comportamentos disciplinares de jogadores do FC Porto. Isso, e o facto de a lei actualmente lhes permitir a iniciativa disciplinar, independentemente de queixa ou participação de outrem, tem conduzido a uma dualidade de critérios — tomando a iniciativa de punição nuns casos, não a tomando em outros em tudo idênticos — da qual não é possível extrair qualquer doutrina minimamente coerente e moralizadora. A actuação do CD aparece assim antes como um factor de correcção — neste caso de correcção da flagrante superioridade futebolística que o FC Porto vem exibindo sobre os seus rivais mais directos. É então que faz ainda mais sentido a frase daquele dirigente benfiquista que explicava que, mais importante que ter bons jogadores, era ganhar as eleições da Liga.

2. O castigo finalmente aplicado ao Deco deveria fazer meditar também todos aqueles que na imprensa desportiva correram a anunciar que o Deco se arriscava, com aquele número da bota, a levar uma suspensão que poderia chegar... aos quatro anos, ou seja, a arrumar praticamente as botas! O absurdo destas previsões sanguinárias, ao arrepio do senso comum ou de qualquer sentido de justiça, só podia ser explicado por um desejo escondido sob a forma de informação e uma pouco subtil tentativa de forçar ainda mais a mão ao CD. Como então escrevi, pretendia-se, manifestamente, preparar o terreno junto da opinião pública para que o CD aplicasse ao Deco qualquer coisa de irracional como seis meses ou doze jogos de suspensão, de modo a tentar nivelar as coisas no campeonato. Essa tentativa patética é eloquente de muitas e significativas coisas, cuja análise deixo aos leitores que tenham a capacidade de a fazer.

3. A acrescentar a um sorteio favorável para a fase final do Europeu, tivemos logo de seguida o mais desejável dos sorteios possíveis para a fase de qualificação do Mundial de 2006. Nunca, que me lembre, tivemos um grupo de qualificação tão fácil e tão acessível, de modo que é caso para dizermos que desta vez, se não conseguirmos qualificar-nos, é porque de todo não justificamos estar no próximo Mundial. A facilidade ditada pelo sorteio poderá eventualmente conduzir a uma reformulação dos planos do seleccionador nacional. Era minha convicção que Scolari ficaria apenas até ao final do Europeu, fosse qual fosse o resultado. Agora, com a perspectiva de estender por mais dois anos um contrato que consta ser milionário, vivendo a família aparentemente satisfeita em Lisboa e com dois anos quase isentos de risco desportivo pela frente, será fatalmente grande a tentação de Scolari de permanecer por cá até 2006. Basta-lhe, para isso, uma prestação um pouco mais que razoável no Europeu.

4 Segundo uma estatística que vi publicada em A BOLA, faltam ao Estádio das Antas três jogos para atingir o número de 1000 jogos oficiais lá disputados e duas vitórias para atingir o número redondo de 800 vitórias do FC Porto na que foi a sua casa nos últimos 50 anos. Se a estatística está certa, e considerando a vontade de toda a gente de só passar para o Dragão quando a relva deste for igual à inesquecível relva das Antas, considerando também as notícias que indicam que o arquitecto Manuel Salgado está a estudar a colocação de pára-ventos nos topos norte e sul do Dragão para evitar aquilo que a estreia mostrou ser o seu grande contra, então penso que a Direcção deve esperar mais três jogos e duas vitórias até proceder à mudança definitiva. Agora, que já todos vimos como é deslumbrante o novo estádio, podemos esperar para que se saia em beleza do antigo e se entre em beleza no novo.

5 Numa linguagem que nem sequer faz o seu género, Jorge Olímpio Bento desembestou aqui, domingo passado, contra os «profissionais da intoxicação da opinião pública, ao serviço de fins escuros que os promovem e sustentam». Neste caso, essa sinistra gente seria composta por aqueles que, tendo-se oposto ao Euro-2004 em Portugal, agora vieram defender a Taça América em Lisboa e lamentar que tenhamos perdido a sua realização a favor de Valência. Ora, eu sou um desses e vou, pois, responder por mim, muito embora já aqui tenha, em escrito anterior, explicado as razões de uma e outra posições. Mas, antes de relembrar essas razões, começo por dizer que fico sempre espantado quando vejo colunistas de opinião atacar colegas de ofício, com o epíteto de profissionais. Acaso receber dinheiro por escrever não é uma profissão digna? Acaso o Jorge Olímpio Bento escreve de borla? (Se sim, peço desculpa por ter confundido com um profissional alguém que tem apenas opiniões gratuitas.) E gostaria de saber o que distingue as opiniões dele das dos outros, de modo a que as suas sejam sérias e as dos outros, quando discordam das suas, sejam «intoxicações da opinião pública, ao serviço dos fins escuros que os promovem e sustentam». Estarei eu ao serviço de «fins escuros» quando escrevi que era bom que a Taça América viesse para Portugal? Então porque não estará ele ao serviço de fins ainda mais escuros (autarquias, clubes, construção civil, empresários turísticos...) quando defende o Euro-2004? Indo agora às razões de ser contra o Euro e a favor da Taça América, é forçoso começar por dizer que o Jorge Olímpio Bento, manifestamente, ignora o que seja a Taça América, de outro modo não faria as comparações disparatadas que fez. Mas sempre lhe direi que, ao contrário do que ele escreveu, a Taça América envolve mais horas de transmissão e mais espectadores televisivos que um Europeu de futebol. Implica muito mais divulgação planetária e mais prestígio para o país anfitrião que um Europeu de futebol e, quanto ao tal «elitismo» de que fala, permitiria recuperar as tradições da vela em Portugal, fazer dela o desporto popular que é em tantos lugares do mundo e levar-nos de regresso, como no passado, às medalhas olímpicas. Envolve mais turistas, mais estadias, mais gastos locais, que o Europeu. Dura quatro anos (ou oito, se o vencedor for o mesmo que detém o título) e não um mês. Traz até nós turistas de muito maior qualidade e poder de compra e não, como no caso do Euro, aviões charter carregados de adeptos que, em muitos casos, viajam directamente para o jogo e regressam após ele. A sua realização em Lisboa não envolvia a construção de estádios, com o consequente endividamento das autarquias e do Governo central, mas apenas o aproveitamento da já existente marina de Cascais e a transformação fácil da Docapesca de Pedrouços em marina, além de um imenso estádio natural, que era o oceano Atlântico. As restantes construções envolventes não esgotariam a sua utilidade durante a competição (como irá suceder com sete dos dez estádios do Euro, que jamais terão assistências que os justifiquem), antes significariam a recuperação de uma zona desaproveitada da cidade de Lisboa e o seu usufruto permanente por parte da população, como sucedeu com a Expo-98 ou o Porto-Capital da Cultura. Mas, e finalmente, ao contrário da Expo, do Porto-Capital da Cultura e do Euro-2004 — todos de prejuízo assegurado para o Estado —, a Taça América daria ao Estado, às autarquias e aos particulares um retorno largamente superior ao investimento financeiro feito. Por isso é que Valência investiu biliões de euros para levar de vencida Lisboa. É tudo questão de conhecer os dossiers de uma e outra competições e ter como critério de escolha o interesse público e o respeito pelo dinheiro dos contribuintes. E, já agora, pelas opiniões dos outros.

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