sábado, dezembro 06, 2003

A verdade tem várias cores (14-10-2003)

Esta semana tive ocasião de responder a uma carta de um leitor
benfiquista de A BOLA, que dizia não perceber como é que uma pessoa
com responsabilidade noutras áreas, onde (palavras dele), sempre foi
considerado e respeitado, se podia revelar tão parcial e tão portista ao
escrever aqui sobre futebol. É uma pergunta recorrente que me fazem e,
por mais que eu já a tenha respondido, sou sempre perseguido por ela,
como se eu fosse, neste aspecto, um caso notável. Ora, não sou. Nem
notável, nem único, nem, julgo eu, o mais gritante. Falando apenas de A
BOLA - o único jornal desportivo que eu leio, desde que me conheço -
pergunto: acaso as crónicas do sportinguista Daniel Reis serão
imparciais? E as de Leonor Pinhão, que junta a um benfiquismo extremado
e legítimo, um ódio sem limite ao F. C. Porto? E os próprios editoriais
do benfiquista José Manuel Delgado, defendendo, entre outras, a velha
tese de que Sporting e Benfica se devem unir no interesse comum de fazer
frente ao F. C. Porto e a Pinto da Costa (confirmando a provocação que
eu costumo defender entre os meus amigos benfiquistas e sportinguistas
de que verdadeiramente só existem, actualmente, dois clubes em Portugal:
o F. C. Porto e o antiF. C.Porto)?
Quando aceitei o convite honroso e estimulante de Vítor Serpa para vir
escrever para A BOLA (especificando que queria que eu escrevesse sob o
ponto de vista de um portista, porque ele não existia no jornal), abri
jogo definindo perante os leitores o que considerava o meu estatuto
editorial. Eu não seria um jornalista, fazendo crónicas de jogos ou
analisando factos a frio, coisa para a qual fui sempre o primeiro a
reconhecer que me faltava distância e isenção para tal, sendo
assumidamente um adepto do F. C. Porto - apaixonado e emotivo, como
todos os verdadeiros adeptos o são. Escreveria sim, na qualidade de
adepto assumido e com o mero estatuto de colunista de opinião e, por
isso mesmo, intitulei a minha coluna de Nortada, para funcionar como uma
espécie de aide-mémoire permanente: ninguém pode legitimamente dizer que
me lê ao engano. Em contrapartida, prometi e julgo que tenho cumprido,
ser um colunista de opinião livre, descomprometido e independente. Isto
é, não tenho quaisquer ambições, nem no meu clube nem no futebol
português, não aspiro a cargos nem a Dragões de Ouro, ninguém,
rigorosamente ninguém, me encomenda ou censura artigos, e bastas vezes
no passado já dei exemplo de ser capaz, quando o penso, de criticar,
quer os dirigentes, quer os treinadores quer os próprios jogadores do
meu clube. Penso que o contrato é sério, é claro e transparente desde o
início e que não me podem cobrar nada mais e nada menos do que isto.
Sucede, porém, que a imprensa desportiva é, na sua esmagadora maioria,
lisboeta e, com ou sem disfarce, adepta ou do Benfica ou do Sporting.
Ainda há umas semanas, estava eu na redacção da TVI a assistir à
transmissão do Partizan de Belgrado-F. C. Porto para a Liga dos
Campeões. Se algum daqueles jornalistas tivesse de manifestar a sua
opinião publicamente, todos eles diriam certamente que torciam pelo
Porto, porque se tratava de uma equipa portuguesa numa competição
europeia e, aliás, é muito importante para as outras equipas que o F. C.
Porto continue a acumular pontos para Portugal no ranking da UEFA, o que
tem permitido a equipas que, por si só, não fazem nada para tal, como o
Benfica, aceder pelo menos e de vez em quando à fase de
pré-qualificação. Pois, tudo muito politicamente correcto. Mas o facto é
que quando o Partizan empatou o jogo, soou um grito histérico de golo!
em toda a redacção, que abalou o edifício de alto a baixo e faria crer a
qualquer passante que ignorasse o que se passava que o Benfica tinha
acabado de marcar um golo ao Real Madrid. Sobre a isenção jornalística
em matéria desportiva, estamos portanto conversados.
Ora, quer queiram, quer não, todos estes jornalistas desportivos
sediados em Lisboa e todos os seus leitores não estavam preparados nem
habituados a terem de levar com os pontos de vista do «inimigo» - que
também os tem e tem direito a tê-los. Assim como o povo tradicional do
futebol, que 80 por cento era sportinguista ou benfiquista, não estava
habituado nem preparado para ver aparecer, já há uns 20 anos atrás, um
outsider com a força do F. C. Porto. Há 20 anos que andam a recuperar do
choque. Assim, em lugar de reconhecer mérito ao adversário ou de
reconhecer culpas próprias, como o facto de o Sporting não saber
escolher treinadores ou o Benfica não saber escolher dirigentes, a
atitude assumida por todos - e que, de tão gasta, já só convence, de
facto, quem quer continuar a não ver o que é evidente - é a de continuar
a afirmar, ano após ano, jogo após jogo, que a superioridade
contemporânea do F. C. Porto se deve ao «jogo de bastidores» e, em
especial, ao favor das arbitragens.
Para que esta doce ilusão possa perdurar eternamente e seja adquirida
como verdade, não dá jeito nenhum que haja, aqui e ali, algumas vozes a
lembrar coisas incómodas: que há transmissões televisivas de todos os
jogos e que qualquer um pode apreciar o que cada um joga e comparar; que
não são certamente os árbitros internacionais (antes pelo contrário!)
que levaram o F. C. Porto a ganhar a Liga dos Campeões, a Taça UEFA, a
Supertaça Europeia, a Taça Intercontinental ou a ser um dos clubes de
referência na Europa e na Liga dos Campeões, enquanto o outrora poderoso
Benfica é capaz de levar 7-0 de um Celta de Vigo ou é incapaz de vencer
uns modestos jovens amadores da Suécia ou da Bélgica; que não são os
árbitros, certamente, que respondem pelo amadorismo de gestão que leva
um Sporting a inaugurar um estádio novo sem relva ou que leva um Benfica
a andar a mendigar lugares para se treinar enquanto constrói o seu novo estádio.
A simples existência de alguém que, de vez em quando, lembre, por
exemplo, que, no Porto-Sporting ficaram dois penalties por marcar contra
o Sporting e a coisa passou como fait-divers, que a Comissão Disciplinar
da Liga parece só ter olhos, vídeo e instinto justiceiro para os
jogadores portistas, que o chamado «sistema» é dominado pela coligação
Boavista-Benfica, que foram eles, contra o voto do F. C. Porto, que
instituíram o actual método de nomeação dos árbitros que agora
apresentam como fonte de todas as suspeitas, tudo isso lhes causa
perturbação às verdades que têm como estabelecidas. Como em tudo o
resto na vida, é sempre muito mais fácil governar e estabelecer a verdade
sem contestações, sem oposições, sem que outra verdade se venha contrapor à nossa.
O ponto fundamental é, pois, este: opinião é opinião, jornalismo é
jornalismo. No futebol, como em todas as outras áreas de jornalismo. Não
há batota desde que para todos seja claro que a opinião da Leonor Pinhão
é a de uma benfiquista, a do Daniel Reis é a de um sportinguista e a
minha é a de um portista. Não quer dizer que isso resolva o problema da
falta de equidade no tratamento jornalístico de cada clube (longe
disso!), mas ao menos fica estabelecido o equilíbrio em termos de
opiniões de colunistas deste jornal.
As coisas complicam-se é quando, por exemplo, na edição do Expresso
desta semana, lemos um trabalho, supostamente jornalístico, de página
inteira intitulado «Onda de choque na arbitragem», e onde, logo após a
leitura das primeiras quatro linhas, já percebemos que se trata de um
libelo a defender as razões de queixa do Sporting em relação à
arbitragem. Atentem, por exemplo, nesta frase: «Agora, o leão volta a
encabeçar o clube dos reclamantes de justiça, atribuindo-lhe os
especialistas inequívocas razões de queixa por dois penalties não
assinalados, já em tempo de compensação, e seguidos de golo do
adversário. Ou seja: dois ou quatro pontos ingloriamente perdidos,
conforme o ângulo de observação.» Ora, pergunto eu: que especialistas,
que penalties? É que eu também vi outros especialistas, e até
caricaturistas, e até sportinguistas na intimidade, dizerem que a
táctica do Sporting este ano é levar os jogos a prolongamento e mandar o
Silva lá para dentro atirar-se para o chão, a ver se cai um penalty do
céu... E, já agora, pergunto se esses mesmos especialistas não viram os
dois penalties que ficaram por marcar contra o Sporting nas Antas,
quando havia 1-0, e se são capazes de me dizer qual foi o jogador da
Académica que, no jogo da 1.ª jornada, terá atirado a bola para canto,
do qual resultou o golo da vitória leonina, seis minutos depois da hora?
E podíamos ficar nesta desconversa eternamente, argumento contra
argumento, verdade contra verdade, opinião contra opinião. Sucede,
porém, que o referido artigo do Expresso não é um artigo de opinião, é
uma peça jornalística, que se presume, factual, isenta e incontroversa
na análise. E quem a assina? Daniel Reis. Será o mesmo Daniel Reis que,
aqui, neste jornal, é colunista de opinião, assumidamente sportinguista?
E, se sim, quando ele muda de colunista para jornalista, quando muda da
opinião para os factos, quando muda de A BOLA para o Expresso, onde é
que ele deixa a sua pele de sportinguista - no vestiário?

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