terça-feira, dezembro 09, 2003

Não há casos ( 4-11-2003)

1 Qualquer pessoa de boa-fé viu que o Deco não tentou, de forma alguma, atingir o árbitro, com a sua bota lançada ao ar. Qualquer pessoa de boa-fé percebe também que a origem daquela confusão esteve no próprio árbitro, que não tendo interrompido logo o jogo para punir a falta que descalçou o Deco, tornou natural que este, num gesto instintivo, não desistisse da jogada e continuasse a jogar sem bota, aí justificando o cartão que o árbitro lhe mostrou. Reconheço que o Deco é um jogador indisciplinado, sobretudo na maneira como reage perante os árbitros, quando se sente injustiçado, ou no ardor que por vezes põe na disputa das bolas, não por maldade, mas por aquela ânsia de disputar cada bola e de estar permanentemente em jogo, com bola ou à procura dela. Os seus excessos são excessos, não apenas de um génio do futebol, mas também de um jogador que tem uma necessidade vital de jogar e uma paixão e entrega ao jogo sem limites. O mais genial jogador de ténis de todos os tempos foi também o mais indisciplinado de sempre: John McEnroe. Hoje, fora dos courts, no circuito de veteranos, onde mantém viva a paixão pelo jogo sem o stress correspondente, é um gentleman venerado por todos. Não quero com isto fazer a apologia da indisciplina ou defender que as leis não devem ser iguais para todos. Mas defendo que, na hora de penalizar os excessos, deve ser ponderado o contributo que cada jogador dá para o espectáculo e as circunstâncias em que os seus actos de indisciplina foram praticados. EmMarselha, por exemplo, o Deco foi injustiçado pelo árbitro, que lhe mostrou um amarelo e o afastou do jogo de hoje nas Antas, não por aquela entrada dividida com um jogador do Marselha, mas porque já o «tinha de ponta» pela forma como ele se manifestava em relação às faltas que ia sofrendo. Este ponto é importante: existe, neste campeonato, pelo menos uma vintena de jogadores, que todos conhecemos, cuja principal ou única utilidade é impedir os outros de jogar. Normalmente não o fazem com faltas grosseiras ou aparatosas, mas com as tais «faltas cirúrgicas», tão louvadas por alguns comentadores: é o agarranço sistemático, a joelhada subtil na coxa, o calcanhar pisado disfarçadamente. Umas vezes as faltas passam impunes, outras não. Mas raramente estes jogadores são amarelados, mesmo quando o ritmo das suas faltas indica claramente que se trata de uma estratégia de jogo, pensada e executada a frio. E são aqueles que eles impedem sistemáticamente de jogar que normalmente acabam por ver um amarelo, quando a paciência se lhes esgota e reclamam do árbitro. Aconteceu isto mesmonoúltimoFCPorto- Nacional, em relação ao Derlei — com a agravante de este ter reclamado de uma falta que existiu e que teria originado um livre perigoso, mas que o árbitro não viu. Vem tudo isto a propósito da histeria que se apoderou da imprensa lisboeta a propósito do episódio da bota voadora do Deco. Quem tivesse acabado de desembarcar em Portugal e visse as manchetes gritando que o Deco se arriscava a quatro anos de suspensão (ou seja, ao fim da sua carreira), ficaria a pensar o que teria ele feito—no mínimo, agredido o árbitro até o deixar estendido à beira do coma. Como se tem de partir do princípio que as pessoas não são completamente desprovidas de senso e ainda sabem olhar para umas imagens e ler um regulamento disciplinar, a única conclusão a tirar de tanta histeria entusiástica era a de que se preparava o terreno para uma manobra clara. Gritando aos quatro ventos que o Deco arriscava quatro anos de suspensão, preparava- se a opinião pública para um castigo terrível e exemplar. E assim, se saírem três ou quatro meses — o que seria um castigo, terrível e exemplar, sim, das verdadeiras funções do CD da Liga —poder-se-á sempre dizer depois: «Muita sorte teve ele, que isto podia ir até aos quatro anos!». Manobras destas, já as conheçemos de gingeira. São eloquentes do espírito desportivo que por aí reina e da consciência de que, com o que está à vista nos relvados, só por outros processos será possível evitar que o FC Porto volte a ser campeão. Só para avaliar uma vezmais que nem todos são iguais perante a CD da Liga, veremos se esta semana abrem processo sumaríssimo àquele jogador do Sporting que, mesmo no final do jogo com o Rio Ave, enfiou, sem bola, uma violenta cotovelada na cara de um adversário...

2 UF!, acabaram as eleições no Benfica! Vamos finalmente ter tréguas deste folhetim sem graça, sem suspense e sem interesse algum. Jamais eleições de desfecho tão previsivel fizeram gastar tanto papel e tanto tempo de antena, televisão pública incluída. No fim, e como já se sabia, Luís Filipe Vieira recolheu os 90 por cento de votos correspondentes a ter tido três anos de campanha grátis na imprensa desportiva; Jaime Antunes recolheu os 7 por cento de votos rigorosamente correspondentes ao universo benfiquista que se preocupa com as contas, com os negócios do José Veiga e com outros «detalhes» de gestão; e Guerra Madaleno recolheu os 0 por cento de votos rigorosamente correspondentes à credibilidade de que goza na sociedade portuguesa, mesmo acenando com o Rivaldo, o Rui Costa e 50milhões de euros — ou, se calhar, por isso mesmo.

3 São muitos os treinadores portugueses que passam a vida a pôr-se em bicos de pés, a chamar a atenção para o seu currículo (a parte boa dele) e a reclamar que «já mereciam um grande». Alguns tiveram direito a um «grande» e afinal mostraram que não faziam ideia do grau de exigência que isso acarreta— regressaram às origens, umpouco menos inchados. António Sousa não é desses. Nunca chamou as atenções sobre si próprio, nunca se atribui méritos que não teve, nunca se desculpou com os árbitros de desaires próprios, nunca cuidou da sua carreira. E, todavia, há sete anos que ele consegue a proeza de—com uma única excepção e no ano em que ganhou a Taça — manter um pequeníssimo Beira-Mar entre os principais do futebol português. De há uns anos para cá, ainda por cima, o Beira-Mar não se limita amanter- se entre os grandes: mereceo pelo futebol que pratica, pela coragem com que joga mesmo em casa dos grandes e pelo nível de jogo apresentado, onde se percebe que há muito trabalho e ideias firmes do seu treinador. Desde que Mourinho está nas Antas, o único jogo em que eu me lembro verdadeiramente de o ver levar um banho de táctica foi precisamente contra o Beira-Mar e nas Antas, uma derrota inapelável que assinalou o enterro do campeonato de 2001 para o FC Porto. Há quinze dias, vi-o dar outro banho de bola ao Sporting, emAlvalade, em que apenas a sorte e um caseirismo indisfarçável do árbitro permitiram umresultado totalmentementiroso. Anteontem, finalmente, na nova Luz, ele demonstrou que nada disto é por acaso. Até ver, o Beira-Mar é das melhores equipas deste campeonato. Merece o lugar surpreendente que ocupa e António Sousa é, definitivamente, umtreinador que merece habitar o segundo lugar do campeonato.

4 Excepção feita a um único pontapé infeliz, na Amadora, e que custou os únicos dois pontos até agora perdidos pelo FC Porto neste campeonato, Vítor Baía vem demonstrando, jogo após jogo, que continua a ser omelhor guarda-redes português. Assim como o jovem Moreira demonstra que é o segundo melhor. Jogo após jogo, inversamente, Ricardo demonstra que, neste momento, só por birra do seleccionador pode ser considerado o n.º1 de Portugal. Mas já se percebeu que, haja o que houver, Baía não irá ao Europeu: está estabelecido há mais de um ano. E o Ricardo Carvalho, unanimemente tido como o melhor central português do momento, só conseguiu ser finalmente chamado quando começou a constar que o Real Madrid estava interessado nele. Aí, Scolari apanhou um susto e correu a chamá-lo.

5 Atento o avanço que já leva no campeonato, atenta a classificação do seu grupo na Liga dos Campeões, esta noite o FC Porto joga o jogomais importante da época. Sem Deco, sem César Peixoto e com umMcCarthy tão longe do necessário.Mas é decisivo vencer. Com toda a calma do mundo mas com toda a vontade de um verdadeiro campeão. Só mais esta vez, Porto!

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