terça-feira, dezembro 09, 2003

Além-fronteiras (25-11-2003)

COMO era previsivel, a experiência árabe de Toni, como treinador, chegou ao fim. O senhor que se segue é Humberto Coelho, na Coreia, que não saiu ainda porque a célebre paciência asiática tem limites a que não estamos habituados.Em contraste, a paciência curta dos espanhóis está a esgotar-se em relação a CarlosQueirós, uma aposta pessoal de Florentino Pérez que sempre teve a desconfiança da torcida e dos jornalistas de Madrid. Com a constelação do Real, a tarefa de Queirós era, à partida, a mais ingrata possível. Se ganhar tudo, ninguém estranhará — é mesmo o mínimo que lhe exigem e o mérito será atribuído não a ele mas aos extraplanetários; se perder, o que quer que seja, a culpa será sempre sua, que não foi capaz de ganhar com uma equipa como jamais se reuniu em lugar ou momento algum da história do futebol. Em contrapartida,Manuel José regressa ao Egipto e Artur Jorge parte para mais uma das suas intermináveis experiências além- -fronteiras — onde, é forçoso reconhecê- lo, nunca conseguiu confirmar os pergaminhos que Viena-87 lhe trouxe. Mesmo registando o êxito — momentâneo pelo menos — que Nelo Vingada está a ter também pelas Arábias (mas continuamos no domínio do terceiro-mundo futobolístico), a regra é que até hoje nenhum treinador português se conseguiu impor de forma indiscutível na cena internacional.Nenhum dos, digamos, 50 melhores clubes da Europa (com a notável excepção do Real Madrid e de Queirós) tem potencialmente um treinador português na sua short list de seleccionáveis. E, se Queirós não conseguir triunfar no Real Madrid, o primeiro treinador português que poderá verdadeiramente ascender a um lugar ao sol na Europa do futebol é José Mourinho — que, com arrogância ou sem ela, tem dado todos os passos certos e todas as indicações necessárias de que se está a preparar para a hora em que for chamado. Sendo que me parece óbvio que ele não quererá começar uma carreira internacional de treinador principal pelas Arábias ou pelo Egipto — pela terceira divisão e não pela primeira. Mourinho irá seguramente escolher um clube grande de um dos cinco grandes da Europa: Espanha, Itália, Inglaterra, França ou Alemanha.Ou então preferirá esperar no Porto, onde, como deixou escapar há dias, num desabafo de raiva contida, há um gozo particular em ganhar contra tudo e contra todos. O panorama em relação aos treinadores exportados repete-se em relação aos jogadores, com algumas excepções e nuances.Temos o caso notável do Luís Figo, que aos 32 anos ainda é titularíssimo no Real Madrid e num lugar tão exigente fisicamente como o de extremo. E temos o caso de Pauleta, também ele titularíssimo no PSG e grande destaque do campeonato francês. Temos depois os casos intermédios de Rui Costa, Boa- Morte, Fernando Couto e Fernando Meira, que alternam nos respectivos clubes a titularidade com o banco de suplentes (entre nós, quando eles ficam no banco de suplentes, costuma-se escrever patrioticamente que foram poupados para o próximo jogo). E temos depois um sem-número de casos claramente falhados, de Dani a Vidigal e Abel Xavier, passando mais recentemente por Capucho e Hugo Viana.E, para acabar, temos os miúdos Quaresma, Cristiano Ronaldo e Hélder Postiga, que partiram com o mundo a seus pés e rapidamente se lhes depararou uma realidade bem mais exigente e difícil do que aquilo que imaginavam. Acontece que em Espanha, em Itália, em Inglaterra, ganham-se, de facto, fortunas. Mas a exigência dos treinadores, dos adeptos e da imprensa está na medida exacta do retorno esperado desses vencimentos milionários. Não basta jogar bem de vez em quando ou fazer um festival de fintas e jogo de cintura um quarto de hora por jogo: é preciso dar o litro e deixar o talento em campo durante todo o jogo, todos os jogos, duas vezes por semana.E também não há equipas que permitam descansar um em cada dois jogos, jogando apenas o suficiente para ganhar. Lá fora, entre os grandes, paga-se caro para ter espectáculo e o espectáculo custa suor, trabalho e sacrifícios a que a grande maioria dos nossos jogadores não está habituada. Cada vez que um jogador português parte lá para fora, é inevitável que começe por se queixar da dureza dos treinos, depois da exigência dos adeptos, de seguida das dificuldades de adaptação e finalmente da frequência dos jogos e viagens.Dá vontade de rir ouvir os responsáveis do Benfica a justificar o cansaço e as lesões dos jogadores com a «sobrecarga de jogos»—contra equipas que, em termos europeus, nem contam. Basicamente, os falhanços dos nossos jogadores lá fora ou as suas dificuldades de afirmação reflectem aquilo que é um sentimento muito português: a incapacidade para ultrapassar uma mentalidade pequenina e feita de facilidades. Em Portugal, um jogador acabado de chegar dos juniores faz dois bons jogos e logo declara que está a sonhar com a Itália ou a Inglaterra. Mas, se tem a sorte de lá chegar, fica siderado com o grau de exigência que lhe cobram, com a «ingratidão» dos adeptos, coma dificuldade da língua e dos costumes locais e acaba roto de cansaço e roído de saudades da família, do bacalhau e do pequeno mundo onde estava habituado a ser reizinho e a ser tratado como tal. Foi por ter sido excepção a esta regra que Luís Figo se conseguiu impor a um grau bem mais elevado do que aquele onde tantos outros falharam. Depois, há também a mentalidade competitiva, que é tortalmente diferente daquilo a que eles estão habituados. Aqui, a rotina de jogo consiste em fazer falta por tudo e por nada, quase por instinto (veja-se o último Porto-Boavista...) e em passar a vida a simular faltas que não se sofreu. Essa atitude é simplesmente detestada em Inglaterra, em Itália, em Espanha, onde quer que o público esteja habituado a ver e a exigir bom futebol. A experiência das dificuldades por que estão a passar os expatriados desta época—Quaresma, Ronaldo, Postiga, Capucho—deveria levar os próximos candidatos à emigração a meditar bem nos seus exemplos. Sair completamente impreparados e apenas para ganhar mais dinheiro não parece ser uma boa opção. É necessário contar com um grau de dificuldades e sacrifícios inesperados, conhecer um mínimo do país e da língua do país para onde se vai, da sua cultura futobolística e da atitude dos seus adeptos e da sua imprensa especializada. Cada vez mais o futebol é um jogo que exige dos seus praticantes duas qualidades primeiras: preparação física e inteligência. Ambas dependem do trabalho feito fora dos jogos, ambas são alheias ao talento próprio do jogador.De nada serve, como dizia o Jorge Valdano do Futre, fintar três adversários dentro de uma cabine telefónica, se depois não se dá com a porta de saída. Olhemos as estrelas galácticas do Real Madrid, de Roberto Carlos a Figo, Zidane, Guti,Raúl ou Beckham: o que têm todos em comum? Talento, a rodos. E capacidade física e inteligência de jogo. É por isso que as cenas lamentáveis dos sub-21 em Clermont- Ferrand não são apenas um episódio sem significado, antes a demonstração de uma mentalidade que permanece e que consiste em não perceber que um jogador de futebol, nos tempos que correm, não se limita a estar em acção e sob o olhar público apenas durante o tempo que está no relvado do jogo. Infelizmente, a mentalidade do jogador português típico vai ganhando fama além-fronteiras, onde, a par de um talento inato e inexplicável que toda a gente lhes reconhece, vem associada a imagem de jogadores faltosos, violentos mesmo e batoteiros. E basta ver algumas arbitragens nos jogos internacionais da Selecção ou das equipas portuguesas para constatar como já estamos a pagar por essa fama.

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