terça-feira, dezembro 09, 2003

A revolução dos novos estádios (28-10-2003)

1 Ausente do País desde sexta-feira passada até amanhã, não terei hipótese de me debruçar sobre a jornada do fim-de-semana e os seus inevitáveis casos de arbitragem, sobre o Boavista-FC Porto ou sobre a inauguração do novo Estádio da Luz. Vejo-me assim obrigado a deixar este artigo escrito por antecipação, quinta-feira passada, e ainda sob o efeito dessa magnífica lição de futebol, de profissionalismo, de garra e de coragem que o FC Porto de José Mourinho deu em Marselha. (E faço um parêntese para dizer que, de facto e a meu ver, foi das melhores lições de estratégia, de liderança e de capacidade de interpretação ao momento que vi Mourinho dar até hoje. Muitos podem detestá-lo, muitos podem a contragosto ser forçados a admirá-lo, muitos podem tentar imitá-lo mas a verdade é que há muito tempo não aparecia no horizonte um treinador português com a categoria, a competência e a personalidade de Mourinho. Num repente transformou em reformados adiados toda uma geração de treinadores e em aprendizes de mestre a geração seguinte.) Mas, retomando o fio à meada, ia dizer que aproveito este temporário afastamento da espuma dos dias futebolísticos para abordar, a propósito da inauguração do novo estádio do Benfica, um tema mais intemporal: o das mudanças que uma nova geração de estádios pode (e deve!) produzir no futebol português. Mesmo os benfiquistas mais sectários hão-de reconhecer que sempre aqui escrevi, sem dor alguma de alma, que tenho o Benfica como o maior clube português em número de adeptos e que considero o seu novo estádio — por aquilo que tenho podido ver de fora ou em filmagens e fotografias — uma obra fantástica de beleza arquitectónica. Se houvesse justiça nestas coisas, o estádio teria uma placa com o nome de Mário Dias à entrada, a homenagear o homem que, praticamente sozinho, sonhou, tentou, impôs e conseguiu o milagre de ter a nova Luz pronta e deslumbrante a tempo e horas. Se houvesse justiça, também Manuel Vilarinho veria creditado ao seu nome e aos seus esforços a capacidade de livrar o Benfica dos apertos financeiros que, em lugar da falência iminente, hoje lhe dão um estádio novo (é certo que com a inestimável ajuda do dr. Santana Lopes, como já o provei) e algum ar para poder respirar. Mas, como os tempos vão de eleições e de há muito está estendida a passadeira para Luís Filipe Vieira, nãome admira que ainda venha a ser ele a reclamar-se e a recolher os frutos da obra feita, enquanto aquela de que foi directamente responsável está à vista e, salvo melhor opinião, não tem nada de que o orgulhe: a equipa do clube que vai inaugurar o novo estádio não o merece, tão pobre é o futebol que joga; e o adversário convidado para a circunstância é hoje uma equipa de terceira do continente sul-americano que, mesmo assim, só aceitou comparecer com a promessa de os lucros da festa servirem para pagar os ordenados em atraso aos seus jogadores. É o La Louvière do rio da Prata.

2 Como quer que seja, aí está mais um estádio de nova geração, e magnífico, ao serviço do futebol português. A entrada ao serviço de oito novos estádios, modernos, bonitos, funcionais e cómodos, representa um ponto de viragem no nosso futebol e, simultaneamente, uma oportunidade irrepetível de devolver o público aos estádios e de encarar o espectáculo futebolístico como alguma coisa mais que 90 minutos de jogo e 15 de intervalo. Mas, não, não se precipitem a interpretarem-me mal: não passei a ser defensor do Euro-2004 por causa dos novos estádios. Fui, sou e continuarei a ser, mesmo depois do Euro, contra o projecto e contra os seus custos sumptuários. Excepção feita aos clubes que já tinham projectado a ideia de novos estádios antes de nascer a ideia do Euro-2004 e dispunham de projectos financeiros sustentados em património próprio e com condições de retorno a médio prazo — Boavista, FC Porto e Sporting —, continuo a considerar que todos os outros resultam apenas duma atitude de país novo-rico, financiado pela passividade dos poucos que pagam impostos. É certo que o Municipal de Coimbra se encheu na estreia — mas para os Rolling Stones. Quantas mais vezes encherá? E o do Algarve, o de Leiria, o de Aveiro, uma vez terminado o Euro, conseguirão sequer sustentar com as assistências metade dos custos de funcionamento? Para que serve a Leiria um estádio novo com capacidade para 30 mil pessoas, quando a média de assistências aos jogos do União não vai além das 3000? E no Algarve haverá 30 mil pessoas para seguirem os jogos dos juniores do Farense ou os dos semi-amadores do Louletano? Que fique claro, então, que uma coisa nada tem que ver com a outra. Apenas, e como espectador, prefiro ver estádios novos e bonitos do que os velhos mamarrachos de betão dos anos 50. Mas, como cidadão, teria preferido que o Estado tivesse aplicado o meu dinheiro noutras coisas, seguramente mais urgentes e mais necessárias.

3 Isto esclarecido, volto então a dizer que acho quase todos os novos estádios uma coisa entusiasmante e uma grande oportunidade para que todos os agentes directamente ligados ao futebol percebam que um estádio de luxo merece um futebol de qualidade. (É preciso também que os realizadores de TV percebam que os novos estádios, a sua arquitectura, o seu ambiente, os seus ângulos, os seus bastidores, passaram a fazer parte do espectáculo e são motivos de atracção e de reportagem e isso pode contribuir decisivamente para traze rmais gente aos estádios. Por exemplo, aqueles planos mortos dos intervalos, com uma câmara fixa dando um plano geral do relvado vazio, são de uma preguiça e de uma falta de imaginação hoje inadmissíveis.) Estádio por estádio, o da Luz é, como já disse, magnífico de concepção, a versão inversa do velho inferno da Luz: é imponente sem ser esmagador, como uma nave espacial pousando ao de leve sobre o terreno. O do Algarve pareceu-me obedecer a uma concepção semelhante, embora mais curto e arqueado, mas atraente e estilizado quando visto de cima da Via do Infante. O Alvalade XXI, de Tomás Taveira, não obstante as críticas até de variados sportinguistas, vejo-o como uma obra perfeitamente conseguida e original, apenas com aquele senão do quisto encostado à muralha do estádio que é o Alvaláxia — mas aí a responsabilidade não será do arquitecto mas sim das necessidades de rentabilização do dono da obra. O jogo cromático dos azulejos, característico de Taveira e que tanto irrita alguns sportinguistas, ajuda, em minha opinião, a integrar melhor o bloco imenso que é um estádio na malha urbana contígua, desmistificando a ideia de imponência majestática que é (mal) suposto um estádio ter de ter. No interior é genial a relação estabelecida entre as bancadas e o relvado e é fantástica a ideia do jogo de cores, aparentemente anárquico, das cadeiras, resultando naquele efeito milagroso de parecer que o estádio está sempre cheio ,mesmo quando não está. Aqui, e em Leiria, que também é da sua autoria, Tomás Taveira confirma aquela que é uma das suas melhores e mais desconhecidas facetas arquitectónicas: o domínio perfeito de uma arquitectura de cenário televisivo. Coimbra confesso que conheço mal, assim como Aveiro, mas parece-me que é má a relação entre o público e o relvado e que o lifting feito é decerto melhor que o que estava mas pouco ousado e pouco marcante — ao contrário de Guimarães. O Estádio de Braga era, é, a grande aposta em qualquer coisa de absolutamente nunca vista. Tem um enquadramento natural quase irreal, com um topo formado por uma montanha de granito e o topo oposto aberto, vazio, sobre um vale, e tem a assinatura de um dos melhores arquitectos portugueses: Souto Moura. Praticamente o que lhe restava, então, era desenhar as duas únicas bancadas laterais. Ainda não vi o estádio mas, por aquilo que me consegui aperceber em fotografias, as bancadas parecem-me uma repetição monótona das fileiras corridas de betão dos anos 50, sem nenhum enquadramento ou aproveitamento da envolvente paisagística. Oxalá esteja enganado. E deixo para o fim a mais curiosa, mais elaborada e mais tardia forma de entender das novas obras: o Estádio do Dragão, do meu clube do coração, e assinado pelo meu arquitecto favorito —Manuel Salgado, a alma do extraordinário ambiente urbanístico conseguido na Expo-98. Dois anos a fio fui passando pelas obras do Dragão, sem nunca perceber ao certo o que dali sairia. Pois bem, agora que falta menos de um mês para correr a cortina, começo a adivinhar que, apesar do esplendor da nova Luz e da coerência do novo Alvalade XXI, o Estádio do Dragão ou muito me engano ou vai esmagar, em beleza da própria obra e na integração do espaço envolvente, tudo o resto que se fez para o Euro-2004. Podem levar isto à conta de facciosismo clubista mas suspeito que está ali prestes a ser desvendada uma das grandes obras da arquitectura contemporânea portuguesa. E, para o fim, deixo o novo Estádio do Bessa, que, tendo sido o primeiro a arrancar, vai ser o último a ser terminado. Dois anos com tapumes alternando de sítio não permitiram até agora ter uma visão de conjunto e deixam a pairar a ideia de que é um estádio remendado por sectores e, de facto, sem noção de conjunto. Mas, tudo visto, o principal fica: tanta obra, tanto esforço e tanto dinheiro gasto exigem, gritam, por um futebol diferente e melhor. Inch’Allah!

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