Se tivesse que dizer do que mais gosto nas férias de Verão, talvez dissesse que é da rotina destes dias — a qual, sendo sempre igual de ano para ano, é uma espécie de garante da continuidade das coisas, da certeza de que o essencial está em ordem, mesmo que a vida se desordene tantas vezes.
E da rotina destes dias, o que mais gosto é das primeiras horas da manhã, antes de conseguir ir para a praia.
Começa com o canto das rolas no pinhal e os ruídos da manhã, que vêm de longe, transportados à distância, com uma nitidez que só acontece no Verão. Acordo para a manhã cheia de luz e comum calor ainda suportável e apresso-me para chegar ao mercado do peixe quando a escolha ainda é abundante e os olhos se enchem de bancas azuis, prateadas, vermelhas, brancas e no ar há um cheiro a meloa e coentros. Vou e venho pelo vai-vém, a barca que, por 60 cêntimos, nos atravessa de um lado para o outro do rio, à hora em que os barcos de recreio vão saindo e as últimas traineiras vêm chegando da sua noite de pesca. Mas, antes disso, antes de apanhar o barco e atravessar para o lado de lá da cidade, onde fica o mercado, paro invariavelmente num café junto aos barcos para tomar o pequeno-al-moço e ler os jornais do dia, comprados na tabacaria ao lado. E começo pela sagrada leitura da BOLA, com que as manhãs de Verão sempre começam desde que me lembro de haver Verão.
Por estes dias de Julho, a leitura da BOLA também tem a sua imutável rotina. Agora, que as vedetas dos estádios já acabaram também a sua estação algarvia — invariavelmente passada em Vilamoura e no bar do tal Paulo China, onde esperam ser fotografados pelas revistas do jet seis (o jet set não vai para Vilamoura nem frequenta locais onde possa ser fotografado) — vive-se a longa estação da chamada pré-época. Os três grandes partem durante uns dez dias para algum hotel paradisíaco situado nos Alpes ou nos Pirinéus, onde pagam com o corpo os copos bebidos nas férias e o treinador tenta integrar e dar espírito de corpo a uma pequena multinacional de brasileiros, argentinos, colombianos, senegaleses, polacos e portugueses. Por mais esforços que façam os enviados dos jornais, não há muito para contar nem muito para ler desses dias de pasmaceira: há sempre um novo jogador que «é mesmo reforço», um outro que «mostrou pormenores de qualidade» (ou seja, não mostrou nada) e outro, que passou a época anterior sentado no banco de suplentes e que agora se exibe como «inesperado reforço» — mas que logo voltará ao seu patamar de Peter.
E, depois, claro, há a infindável novela dos craques que vão ser comprados e dos que vão ser vendidos. Os primeiros, acabam sempre por se revelar mais caros do que as fracas bolsas dos clubes portugueses desejariam, e as iminentes aquisições arrastam-se com «arestas por limar» ou na expectativa da chegada do empresário que há-de «desbloquear» as negociações. Os segundos, pelo contrário, afinal não encontram compradores pelo preço que era suposto valerem e, claro, sempre muito aquém das célebres «cláusulas de rescisão», com que os adeptos que os não querem ver vendidos são tranquilizados... antes de se verem iludidos. O Benfica, depois de anos e anos em que não via ninguém interessar-se por qualquer jogador seu, tem agora, e como é sabido, «meia-Europa» atrás do Luisão (um clássico de todas as épocas), e do David Luiz e Fábio Coentrão. E, ora incham de orgulho com tanta cobiça relatada, ora descansam impantes com a «intransigência» da SAD em não os vender por menos do que a cláusula de rescisão — como sucedeu com o Di Maria... O Sporting, depois do surpreendente negócio do João Moutinho, desespera agora para que alguém venha e faça também do Miguel Veloso um «traidor», para que a situação financeira, já em alerta vermelho, não entre em alerta negro. E, entretanto, mantendo a prosápia de grande, vai escorregando para os jornais notícias do seu interesse na compra de sucessivos nomes de peso internacionais que, todavia, por esta e aquela razão, acabam sempre não vindo. Mas o que importa é a notícia do «estatuto», poder dizer que «o Sporting está no mercado», mesmo que, depois, tudo se reduza ao novo sportinguista desde pequenino e novo patrão do meio-campo, Maniche. O FC Porto, cuja SAD nunca resiste a comprar uma dúzia de jogadores mais no início de cada época, desespera também para encontrar comprador para o Bruno Alves e o Raul Meireles, nessa meia-Europa que também suspira por eles há tanto tempo. E, embora neste caso, até já se tenha feito saber aos quatro ventos que as cláusulas de rescisão não interessam para nada, começa a crescer a angústia de que não haja dinheiro para pagar as novas aquisições, sem ter de entrar em saldos ou então a ter de vender os que não estavam nos planos: o Álvaro Pereira, o Falcão ou o Hulk. (Já agora, e não sabendo se ainda vou a tempo, gostaria de exprimir um desejo de portista: que a SAD não compre o tal Walter, que tem alimentado um longo romance nestes dias de férias. E por várias razões: porque não gosto do nome nem da cara dele; porque, tão jovem ainda, já arrasta uma fama de indisciplinado e regateiro nas negociações; e porque, embora eu entenda que um miúdo nascido miserável numa favela brasileira não tenha tido condições para ir à escola, já não entendo que, aos 20 anos de idade, já rico e futebolista — isto é, com um horário de trabalho de três horas por dia — não tenha arranjado tempo para aprender a ler e a escrever. E, no futebol de hoje, um jogador analfabeto é uma menos-valia, em todos os aspectos. Mas este meu desejo já deve estar desajustado: naquela casa há uma adição por compras verdadeiramente fatal).
E assim, entre a paz das férias e angústia do mercado de jogadores, vou vivendo este tempo mágico do Verão. Como todos os portistas, habituei-me, nesta altura do ano, a olhar a medo para os cabeçalhos da BOLA, assim que a compro. Nos últimos anos, em Julho, vários dias se estragaram, quando olhei para a primeira página do jornal e vi que tínhamos perdido o Deco, o Pepe, o Quaresma, o Anderson, o Lucho, o Lisandro, etc. Mas, não sei porquê, nunca leio outro tipo de notícias: «perdemos» o Helton, o Stepanov, o Mariano, o Guarín, o Valeri, o Prediger. Nem sequer o Farias, mesmo dado! Li que André Vilas-Boas tem ao seu dispor 37 jogadores — não contando com aqueles que já nem sequer se apresentam no Dragão para se mostrarem ao novo treinador e que por aí andam, dispersos pelo mundo, a engrossar a folha salarial de uma empresa que se dá ao luxo de ter menos trabalhadores ao seu serviço do que aqueles que estão permanentemente dispensados de serviço. E li que, desses 37, ele só queria ficar com 23. Mas, como começa a instalar-se a ideia de que nem Meireles nem Bruno Alves vão encontrar o tão anunciado comprador ao virar da esquina, os 23 já subiram para 25 — limite máximo. O que quer dizer que, queira ou não queira, Villas-Boas vai acabar com 28 a 30, como sempre sucede com os treinadores que por lá passam. O primeiro trabalho de um treinador do FC Porto é gerir a quantidade; só depois é que tem de gerir a qualidade.
Bem, vou voltar para férias. Espero ter boas notícias do Walter, quando abrir o jornal, hoje de manhã.
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