terça-feira, junho 28, 2011

BRAVO, ESPANHA! (13 JULHO 2010)

1- Não faço parte daqueles portugueses que vivem a invejar e maldizer a Espanha e a repetir a estafada frase dos maus ventos e maus casamentos. Pelo contrário, até aprendi que Filipe IV foi dos melhores governantes que já tivemos e não invejo a Espanha: admiro-a. Considero a Espanha uma fabulosa pátria de nações, cuja diversidade é a sua força e cuja relação com o poder central não é feita de lamúrias e reivindicações constantes, mas de gestos concretos de vontade e personalidade própria, da comunidade e das regiões. Em Portugal, vive-se a reclamar do poder — subsídios, privilégios, apoios; em Espanha, faz-se e avança-se, sem o poder e, se necessário, contra ele. Nós fizemos as Descobertas através de um monopólio da coroa, em que muitas vezes os capitães, os donatários e os governantes locais eram escolhidos pelo antiquíssimo e sempre actual sistema da «cunha»; os espanhóis descobriram a América com fundos e iniciativa privada, saída dos empresários de Sevilha.
Eu não invejo a Espanha, eu admiro-a. Admiro um país que teve Velásquez, Goya, Dali, Picasso, Miro, Cervantes, Cela, Unamuno, Montalbán, Almodóvar, Penélo-pe Cruz, Joan Manuel Serrat. Que fez e preservou Santiago de Com-postela, Trujillo, Barcelona, Sevilha, o Alhambra, Salamanca, San Sebastian, Córdova. Um país que produz campeões do mundo no golfe, na vela, no basquetebol, no ténis, na equitação, nos ralis, na Fórmula 1 e, agora, no futebol.
Enquanto português e vizinho, não invejo a Espanha: reclamo quando abusam de nós (não por quererem comprar a Vivo, mas quando nos roubam a água, as pescas e nos encostam centrais nucleares junto à fronteira — essa coisas de que os nossos governantes não se atrevem a reclamar). Mas, no resto, só posso admirar um país e um povo que sempre foi «mau aluno» europeu: não acabaram com a sesta nem submeteram o seu calendário ao clima de Bruxelas, não deixaram de fumar mais ou menos onde querem, nem acabaram com as caçadas e as touradas, como querem os Zelotas de europeus, nem deixaram de comer o que gostam, por mais politicamente incorrecto que seja. Por isso, a Espanha tem uma qualidade cada vez mais rara e preciosa: tem personalidade. Los tiene en su sítio. E anteontem, em Joanesburgo, os espanhóis provaram que não é preciso abdicar daquilo que é próprio para conquistar o que se sonha. Mas dá muito trabalho, muito e exaustivo trabalho, conquistar os sonhos.
Como toda a gente já disse, esta equipa de Espanha é o resultado dos dois anos de sucesso da dupla Laporta/Guardiola na construção dessa fabulosa equipa do Barcelona — provavelmente a melhor equipa de futebol de clube jamais vista. E a grande ironia do seu triunfo em África foi que, enquanto que o ex-presidente Laporta, que teve de abandonar o Barcelona FC após o cumprimento do único mandato que os estatutos do clube lhe permitiam fazer (coisa impensável entre nós...), agora se vai dedicar à política, fundando um partido independentista, a facção espanhola do Barcelona queele criou deu um contributo determinante para a vitória da Espanha: sete jogadores do Barça entre os onze titulares habituais (contra dois do Real...) e todos os oito golos da Espanha no Mundial assinados por jogadores que ele contratou para o Barça. Ou seja: sem o Barcelona, sem a cantera futebolística da Catalunha, a Espanha não teria ganho o Mundial. E certamente que Laporta terá estremecido quando viu Puyol agarrado à bandeira de Espanha ou Iniesta agarrado à Rainha Sofia. Mas o que seria também do Barcelona FC sem a Espanha? Jogaria o campeonato da Catalunha, tendo como único opositor o Espanhol de Barcelona? Eis o milagre do futebol: conseguir unir o que a política e a História trazem desunido.

2- Anunciada como a primeira final de um Mundial entre duas monarquias, a final de Joanesburgo foi uma real chatice. Um jogo de «mata-talentos», como escreveu o Vítor Serpa, com 41 faltas, pancadaria sem fim, marcações cerradas, terror do risco, do génio, do imprevisto. Uma péssima propaganda planetária a este jogo outro-ra maravilhoso. Há anos que venho escrevendo que um dia os treinadores ainda hão-de conseguir matar o futebol, de tal forma se deixaram reduzir à escravidão dos resultados para satisfazer os figurões que lhes pagam e não o povo que vai aos estádios. Este Mundial mostrou-nos que já faltou mais.
Quem se lembra das duas gerações fabulosas da Holanda — a de 74, com Cruyff e Neeskens, e a de 78, com Van Basten e Rijkaard —, só podia desejar a derrota desta Holanda. Chegou à final por caminhos simplificados, o que mais acrescentava à sua responsabilidade de mostrar que merecia aquele momento e aquela taça. Mas o que se viu foi uma equipa formada por um bom guarda-redes, um grande médio ofensivo e um grande avançado, acompanhados por oito caceteiros, jogadores de bola quadrada. Mostrou não ter nenhum plano de jogo, que não fosse o de destruir por todos os meios o jogo do adversário. Sem fazer um grande jogo, que nunca fez, a Espanha jogou o suficiente para merecer a vitória e evitar derrota maior do futebol.

3- Porque foi um Mundial muito mal jogado, talvez o pior de sempre. Todas as grandes vedetas se apagaram e não creio que por acaso. Para além de repetir a minha tese de que os Mundiaissão jogados na pior altura, em final de época e quando os grandes jogadores estão sobrecarregados, acho também um disparate uma competição com 32 selecções, disputando 64 jogos e arrastando-se por um mês inteiro de compe-tição, mais três semanas de preparação e jogos particulares. Não já justificação alguma a não ser a ganância financeira da FIFA, bem exemplificada fisicamente na figura de «padrinho» do sr. Blatter e a sua écharpe branca. O cansaço das vedetas mais as tácticas dos treinadores desaguaram num Mundial insuportavelmente soporífero. E que, pela primeira vez, não ficará para a história para ser lembrado como o Mundial desta ou daquela selecção, deste ou daquele grande jogador. Bem avisado andou o Cristiano Ronaldo, que logo tratou de comprar um filho para poder regressar às bocas do mundo, por outra via — já que, por via futebolística, foi o que se viu.

4- 0 melhor marcador do Mundial foi a Jabulani. Vários jogadores marcaram cinco golos, mas a Jabulani, sozinha, marcou uns dez ou doze. Mais uma vez, os interesses comerciais da FIFA (e agora também os da Liga de Clubes) fizeram-na optar por uma bola que destrói o futebol, tal como o conhecemos — porque, como explicaram os engenheiros da NASA, a mais de 73 kms/hora ganha trajectórias imprevisíveis e absurdas, e a mais de 20 metros de distância da baliza levanta voo. A FIFA dizia que com esta esfera louca iríamos assistir a muito mais golos — mas foi o Mundial com menos golos de sempre. Dizia que os grandes especialistas em livres e remates de meia-distância iriam caprichar — mas nenhum deles conseguiu marcar um só golo. Dizia que os guarda-redes se iriam adaptar rapidamente — mas o que vimos foi que mesmo os guarda-redes mais seguros não se atreviam a agarrar a Jabulani, tratando de a sacudir de qualquer maneira, como a um insecto infeccioso. Tal como as vuvuzelas, a Jabulani veio para dar cabo do futebol, dos seus tempos, da sua elegância, dos seus sons próprios, da participação dos adeptos, das grandes defesas dos guarda-redes. É verdade que marca bastantes golos, mas menos dos que impede, e os que marca são infinitamente mais feios do que aqueles que entrariam se esta danação da Adidas cumprisse minimamente as regras de geometria que fizeram do futebol um jogo de virtuosos.
Não consigo perceber que conspiração é esta para matar um jogo tão bonito.

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