sábado, junho 09, 2012

DESERÇÃO (14 JUNHO 2011)

1- Não há palavras que possam classificar a deserção de André Villas Boas para o Chelsea. Não há palavras, só um número: cinco milhões de euros por ano. Não vale a pena virem com as habituais considerações sobre a proposta irrecusável, sobre o direito que lhe assiste de partir para outro desafio ou fazer o contrato da sua vida, etc e tal. Não vale a pena, porque não chega. Não é verdade que não haja propostas irrecusáveis, assim como não é verdade que todos tenham o seu preço: conheço gente, sem dúvida que excepções, mas que não têm preço de venda nem aceitam uma proposta, por mais aliciante que seja, se isso ofender aquilo que são os seus valores éticas ou a palavra dada. Acho perfeitamente legitimo que quem ganha 500,1000 ou mesmo 5000 euros por mês aceite mudar-se por uma proposta melhor, em termos profissionais ou financeiros. Não aceito nem compreendo, porém, que quem assina um contrato a prazo curto, com determinados objectivos que aceitou contra um salário milionário de 50 ou 100 ou 150 mil euros por mês, se comporte como uma “ Maria-vai-com-quem- der mais.”

Acresce que, no caso de Villas Boas, tudo concorre para tornar a sua deserção ainda mais lastimável. Há um ano atrás, ele não era ninguém, apenas uma potencial promessa que Pinto da Costa resolveu assumir, chamando a si todos os riscos e dando-lhe a ele uma oportunidade com a qual tão cedo, pelo menos, jamais poderia sonhar. Se a aposta tem falhado, a responsabilidade seria inteira de Pinto da Costa; Villas Boas teria, quando muito, de esperar mais e provar mais até ter segunda oportunidade. Depois, e por maiores que sejam, e são, os méritos próprios de André Villas Boas na fantástica época do FC Porto, ele nada teria conseguido se não tivesse vindo encontrar uma organizarão, uma estrutura, uma cultura e um ambiente de vitória instalados de há muito, e até uma equipa formada e pronta a triunfar. E, enfim, porque estamos a falar de alguém que ali chegou por se afirmar portista de coração e alguém com educação e cultura muito acima do nível médio dos seus pares - o que acarreta obrigações e não direitos. A forma como ele abandona o tal clube do seu coração, a oito dias do início do estágio e da prepararão da época, com diversas alternativas de treinador agora fechadas, e deixando aos jogadores mais cobiçados do clube um exemplo que se traduz numa espécie de grito de debandada "agora é cada um por si e o clube que se lixe!" , não é, seguramente a forma como foi educado nem traduz os valores em que todos acreditávamos que ele acreditava. Gostaria de saber o que tem André Villas Boas a dizer agora aos adeptos cujo apoio pediu ao longo do ano: queria o nosso apoio para a equipa ou para si próprio, para o ajudar a dar "o grande salto em frente"?

A resposta a esta pergunta envolve um mal-estar de que há muito dou conta aos meus leitores. Nós, os adeptos doa clubes, somos os únicos que apenas pagamos e nada recebemos, os únicos que não traímos, que ficamos, de ano para ano e de geração para geração, a apoiar, em boas e más horas, um grupo que julgamos serem o nosso clube, mas que, no essencial, mais não são do que um conjunto de profissionais reunidos ad hoc e que ali estão provisoriamente à espera da primeira oportunidade em que lhes ofereçam bom dinheiro para trocarem de cores, de clubes e de auto-proclama das fidelidades. Já não há Maldinis no futebol! Vejam o Fábio Coentrão, tão benfiquista que ele é, e que a nada mais aspira do que mudar-se para Madrid. Vejam o Bruno César, a nova grande aposta brasileira do Benfica, que, antes mesmo de chegar, já estava a declarar que o Benfica podia ser um bom trampolim para outros voos. Não sei o que pensam os leitores, eu estou a ficar farto de servir de chão para o trampolim destes rapazes.

Depois da deserção de Villas Boas, a porta fica escancarada para o desmembramento desta fantástica equipa. Quando o capitão abandona o navio a meio da viagem, à tripulação resta seguir o antiquíssimo grito de "salve-se quem puder!". Infelizmente, não vão ser nem o Rolando,nem o Fernando, nem o Cristian Rodriguez. Neste mar de piratas em que navega o futebol dos milhões, os grandes predadores dos mares sabem muito bem a quem apontar as mandíbulas. No FC Porto de hoje, é a Hulk, Falcão, Alvaro Pereira, Guarin, Otamendi e James. Não tenho dúvidas de que Pinto da Costa vai resistir e bater-se enquanto puder. Mas nunca a sua tarefa foi tão difícil: o homem a quem ele confiou o corpo e a alma da equipa, a quem ele deu tudo o que um jovem e absolutamente inexperiente treinador podia sonhar ter, agradeceu espetando-lhe a faca nas costas.

Não há palavras, apenas uma grande tristeza e mesmo vergonha por outrem. Não desejo felicidades algumas a André Villas Boas, no Chelsea. Sempre achei que um dia ele iria para Inglaterra - o destino natural do seu perfil e talento. Mas não agora, nem assim. Escolheu, e a vida é feita de escolhas. São elas que, mais do que tudo, qualificam as pessoas e revelam os seus valores e as suas regras de vida. Cinco milhões são cinco milhões mais do que consigo imaginar. Mas eu ainda acredito que os valores de cada um não se medem a milhões, assim como a vida não se joga a feijões. Por isso, porque isto não é feijões, ele parte rico mas imensamente empobrecido. Coberto de milhões, descoberto de razões. Que viva em paz com os seus milhões.

2- Agora, Michel Hatini, se quisesse falar a sério, podia perceber como foi deslocada, e até patológica, a sua condenação de um FC Porto estrangeirado. Também eu senti como uma ofensa (e dela aqui dei conta) o espectáculo dos jogadores do FC Porto no final do jogo de Dublin, cada um embrulhado na respectiva bandeira nacional e até Rolando e Ruben Micael (tanto quanto sei jogadores da Selecção de Portugal) embrulhados nas bandeiras de Cabo Verde e Madeira - como se Portugal não existisse ali, representado por um jogador que fosse.

Mas dai até Platini dar o FC Porto como um exemplo de uma equipa europeia sul-americanizada e estrangeirada, vai uma grande distância. Porque outra coisa não são o Braga ou o Benfica, o Nacional da Madeira e tantos outras equipas do nosso futebol... que joga com as armas que tem. Se Fábio Coentrão sair mesmo para o Real Madrid, vai-se embora o último grande jogador português a jogar em Portugal, e isso quer dizer alguma coisa. Quer dizer que nós não temos capacidade para segurar os valores que criamos, restando-nos lançar mão dos mercados alternativos que melhor trabalhamos, indo buscar jogadores novos para os formar, valorizar e revender com lucros. E o que faz o FC Porto desde há muito e o que faz agora também o Benfica.

Mas se isto é assim, se gente como Roman Abramovic consegue, com a maior das facilidades, estoirar com todos os contratos em vigor entre os clubes portugueses e os seus melhores jogadores (ou treinadores), é porque as regras da UEFA, de que Platini é responsável, o consentem e promovem. Ele não se devia escandalizar porque o FC Porto tem organização e capacidade de trabalho suficientes para descobrir um Lisandro, um Lucho, um Anderson, um Falcão, um Hulk, um James Rodriguez - que os tubarões da Europa depois sacam quando querem. Ou descobrir e potenciar, com condições de trabalho que todos elogiam, um José Mourinho ou um André Villas Boas - que depois o grande dinheiro de lavagens ou outras proveniências duvidosas compra e aproveita tranquilamente. O que o devia procupar é ver um Arsenal sem um único jogador inglês, ver o Manchester ou o Chelsea recheado de estrangeiros e sul-americanos que não descobriram nem valorizaram, apenas aproveitaram após o trabalho alheio. Ou ver os clubes franceses, ou a sua Selecção, cheios de jogadores franceses que, de franceses, só têm a alcunha e não são mais do que uma manifestação imperial francesa em Africa. Platini preside a uma organização para a qual, tal como a FIFA, o dinheiro é quase tudo. E o grande dinheiro está nos dez grandes clubes europeus que, financiados por paraquedistas do futebol, se comportam como predadores dos mais pequenos.

E verdade que esse negócio, como todos os negócios, é bilateral e também aproveita aos clubes portugueses - e serve-lhes, muitas vezes, para cobrir prejuízos crónicos de má gestão. Mas que outra alternativa têm os nossos chamados "grandes" face aos verdadeiramente grandes da Europa?

A facilidade com que o Sr. Abramovic atacou Villas Boas, se dispôs a pagar sem pestanejar os 15 milhões de indemnização pela rescisão unilateral do contrato com o FC Porto e de seguida se propõe, a conselho de Villas Boas ou não, continuar a desmantelar a equipa do FC Porto que para o ano vai atacar a Champions, é ilustrativa da desigualdade competitiva em que vive o futebol europeu. E isso é que devia preocupar Michel Flatini. Em lugar de alimentar um ódio ao FC Porto, feito de arrogância e ignorância, ele devia era elogiar um clube que consegue estar todos os anos entre os oito melhores da Europa, apesar das condições de desigualdade financeira que enfrenta, numa luta de sobrevivência contra o dinheiro novo dos magnatas russos, sheiks árabes e tycoons asiáticos - a quem o futebol nada deve e nada ficará a dever, quando eles se forem embora para outro ramo de negócio. Mas perceber isso é demais para a cabeça de um francês arrogante.

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