terça-feira, outubro 26, 2004

Os 1008 heróis (12 Outubro 2004)

Parece que os clubes de Lisboa descobriram a forma de ganhar uma
vantagem adicional quando recebem o FC Porto em casa: fechar os
respectivos estádios aos adeptos portistas e enchê-los apenas com a sua
gente



1Parece que os clubes de Lisboa descobriram a forma de ganhar uma
vantagem adicional quando recebem o FC Porto em casa: fechar os
respectivos estádios aos adeptos portistas e enchê-los apenas com a sua
gente. A moda começou na época passada, quando o Sporting (e Lucílio
Baptista...) receberam o FC Porto, e foi agora também adoptada pelo
Benfica que, generosamente se dispõe a receber na Luz não mais do que
1008 portistas — e nem mais um. Em sua defesa, invoca o Benfica razões
de segurança não especificadas e, logo, difíceis de entender. Se é por o
Estádio estar cheio, tanto estará cheio com 64.000 benfiquistas e 1000
portistas, como o estaria com 60.000 benfiquistas e 5000 portistas. Se é
por os adeptos portistas serem especialmente perigosos, gostaria de
saber quando é que, vá lá, nos últimos 30 anos, causaram eles problemas
na Luz. Aexplicação posteriormente avançada por responsáveis da Benfica,
Estádio, essa, ainda é mais comprometedora. Dizem eles que os cativos
estão espalhados por todo o Estádio e que os seus titulares «desejam
naturalmente ver o jogo em segurança e sem serem incomodados pelos
adeptos adversários». Olha que Lordes, só se sentem bem e seguros entre
eles! Conviria, pois que os dirigentes do Benfica, começando pelo seu
presidente, explicassem melhor as tais «razões de segurança», em lugar
de, como ele o fez, declarar apenas que «não é bilheteiro» — como se
fossem os bilheteiros a decidir quantos bilhetes enviavam para o Porto.
E conviria que o explicassem, porque esta medida é, não apenas
antidesportiva e anti-regulamentar, mas também, e como disse o dirigente
portista Fernando Gomes, uma medida contra o espectáculo. É
antidesportiva, porque, como é óbvio e por todos reconhecido, ter ou não
ter o apoio dos adeptos durante um jogo, ainda que em muito menor
número, é sempre motivador para as equipas, além de uma salvaguarda
miníma contra as pressões dos adeptos locais sobre o árbitro. É o que
sucede quando os nossos clubes jogam no estrangeiro e o apoio dos seus
adeptos, ainda que sempre em larga minoria, funciona como um catalizador
de vontade e determinação: é o célebre princípio do «you’ll never walk
alone», hino da claque do Liverpool. A atitude da Direcção do Benfica,
como anteriormente a da Direcção do Sporting, constitui, assim, um gesto
feio e antides portivo, além do mais revelador de medo e de fraqueza.
Mas sucede que, para além disso, esta decisão arbitrária viola os
regulamentos da Liga de Clubes, os quais estabelecem uma quota mínima de
lugares reservados aos visitantes, e que o Benfica está muito longe de
cumprir com a sua generosa disponibilização de 1008 bilhetes para os
dragões. Ora, convém lembrar que os regulamentos da Liga foram aprovados
pelos clubes, entre os quais Benfica e Sporting, e dificilmente se
compreende que quem fez aprovar uma coisa se reserve o direito de,
depois, não a cumprir—particularmente o Benfica, que detém a
vice-presidência da Liga. Estranhamente, ou talvez não, o anterior
incumprimento do Sporting, mereceu da Liga apenas uma ligeira multa de
1.200 euros —o que foi uma maneira de estabelecer que este crime
compensa. E, como compensa, na primeira oportunidade, aí temos o Benfica
a seguir as pisadas, sempre «moralizadoras e cavalheirescas», do seu
parceiro da Segunda Circular. Como é óbvio, eu só espero que, quando
calhar a vez próxima de ser o FC Porto a recebê-los, pague na mesmíssima
moeda. Assim, os adeptos do Benfica ficam desde já avisados de que,
aplicadas as regras da reciprocidade e da proporcionalidade, não devem
contar com mais do que uns 700 bilhetes, quando se deslocarem ao Dragão
para ver jogar o seu clube. E os protestos, podem começar já a
remetê-los por antecipação para a sua Direcção. Não venham depois dizer
que foi Pinto da Costa que não os quis lá... Finalmente, esta é também
uma medida que, a prazo, prejudica o espectáculo e prejudica todos. Eu
cresci toda a minha infância e juventude a só ter hipótese de ver o meu
clube quando ele vinha jogar a Lisboa. Há mais de quinze anos que eu via
o Porto jogar em Lisboa, no Estoril, no Barreiro ou em Setúbal, até
finalmente ter tido a oportunidade (inesquecível, como se pode
imaginar...) de o ver jogar em casa, no seu estádio, perante uma maioria
de adeptos seus. Nunca, por mais «à cunha » que estivessem os estádios
(e, nesse tempo, ia-se mais ao futebol do que hoje), eu deixei de poder
comprar o meu bilhete por ter esbarrado numa quota tão mínima que, na
prática equivale a quase nada. Se esta moda vai ter continuidade, os
grandes clubes portugueses acabarão por estabelecer a prazo a regra de
que nos seus estádios só entram adeptos seus. Não me parece que seja a
forma mais adequada para trazer de volta ao futebol as centenas de
milhares ou milhões de espectadores que dele se afastaram nos últimos
anos. Não se trata apenas de um «faitdivers ». O assunto é sério e pode
acarretar consequências graves no futuro, que nem se quer ocorreram aos
que hoje, armados em «chicos- espertos», tão levianamente decidiram
jogar em família contra o campeão, para ver se assim têm mais hipóteses.


2A leitura da edição de sexta-feira deste jornal mais parecia o boletim
da Câmara de Falências.Aí se dava conta da situação financeira
assustadora e sem solução próxima que se veja, de clubes como o
Sporting, o Guimarães, o Estoril e o Salgueiros. Terrenos penhorados,
dívidas ao Fisco, salários de jogadores em atraso, fornecedores por
pagar, enfim, todo o rol habitual de sociedades geridas à vista e na
espera permanente do milagre. É claro que é diferente a situação do
Sporting, embora, à sua escala, não deixe de ser igualmente preocupante.
No meio dessas notícias, a excepção: os 25 milhões de euros de lucro
apresentados pela SAD do FC Porto. Mas, mesmo esses 25 milhões, obtidos
num ano excepcional e dificilmente repetível brevemente, parecem pouco
se no próximo ano o clube regressar aos números anteriores a esta época
dourada: 18 milhões de prejuízo. Ou seja, se nada for feito para reduzir
drasticamente as despesas correntes, os resultados de um ano excepcional
serão engolidos em menos de ano e meio de normalidade. É gritante que a
actual estrutura competitiva e organizativa do futebol português não tem
viabilidade a prazo—nem para pequenos, nem para grandes. Toda a gente o
percebeu já mas ninguém tem a coragem de dar o primeiro passo no sentido
das reformas urgentes que se impõem.

3Segundo noticiou a TVI, a Inspecção-Geral de Finanças terá concluído
que a autarquia portuense, na altura chefiada por Nuno Cardoso, terá
beneficiado largamente o FC Porto e outros proprietários de terrenos nas
Antas, aquando da montagem da operação que levou ao desaparecimento das
Antas e ao nascimento doDragão, com a reformulação total de toda a zona.
Não é a primeira vez que a IGF faz esta acusação, já anteriormente
rebatida, quer por Nuno Cardoso, quer pelo FC Porto. Fiquei assim sem
perceber se o relatório era o mesmo de então, se era a continuação e
aprofundamento do anterior, se continha ou não factos novos. Também me
parece estranho que a IGF não conduza idêntica investigação
relativamente às condições oferecidas por Santana Lopes ao Benfica e ao
Sporting, para a construção dos seus novos estádios. Tanto mais que há
aqui um facto que me parece estranho para justificar as conclusões da
IGF: o FC Porto usou, na sua operação, património imobiliário que lhe
pertencia, ao contrário do Sporting, que pouco ou nada tinha, e do
Benfica, que nada tinha. Mas, porque acima de tudo, prezo a coerência,
seria bom, de facto, que o Ministério Público, seguindo a sugestão da
IGF, investigasse se há ou não matéria para procedimento criminal contra
o ex-autarca do Porto, por gestão danosa de bens públicos em benefício
de entidade privada. E que a IGF, obviamente, investigasse agora,
relativamente aos estádios do Euro, as actuações das edilidades de
Lisboa, Braga, Guimarães, Aveiro, Leiria, Coimbra e Faro. Para que não
ficasse a sensação de que só se investiga os que perderam o poder.

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