Foi curioso ver, no Real Madrid que este fim-de-semana perdeu com o Espanhol, que ficaram de fora jogadores como Figo, Zidane, Beckham e Raúl, enquanto no onze inicial do FC Porto contra o Estoril ficaram de fora Diego, Quaresma, McCarthy e Derlei. Eis como a abundância de estrelas se pode transformar num problema real
O futebol é assim mesmo: o Benfica, como uma equipa base em tudo idêntica à da época passada, menos o Tiago, vai à frente do campeonato com três vitórias em três jogos — nenhum dos quais esteve sequer perto de impressionar pela qualidade do futebol mostrado. Da mesma forma que ganhou anteontem em Coimbra, poderia perfeitamente ter empatado também que ninguém se admiraria, face àquilo que se viu.
O FC Porto, com uma nova constelação de estrelas que substituiu, em quantidade, as que saíram e que até levou José Mourinho a comentar que a equipa desta época é mais forte que a que foi campeã europeia, vai em quatro jogos consecutivos sem vencer (uma única vitória nos seis jogos sob o comando de Fernandez), perdeu a Supertaça Europeia, comprometeu a sua entrada em cena na Liga dos Campeões e, caso consiga ganhar amanhã ao União de Leiria no jogo em atraso, leva, mesmo assim, já quatro pontos a menos que o Benfica. E, todavia, se bem que o seu empate caseiro com o Estoril tenha castigado mais uma exibição sem chama nem tino, a verdade também é que, se tivesse ganho, ninguém se poderia espantar, face à enxurrada de jogo ofensivo, embora desconexo, e de ocasiões de golo de que dispôs na segunda parte.
Fez bem o jovem treinador estorilista Litos em vir desdizer, a frio, a sua observação a quente de que «não nos deixaram ir mais além». Ele é o mais novo treinador da SuperLiga e não lhe fica bem começar já com as habituais suspeitas e desculpas com a arbitragem, para mais quando elas não têm razão de ser. A única queixa válida que o Estoril teve sobre a arbitragem foi a falta cometida por Seitaridis sobre um avançado estorilista que corria com perigo para a baliza portista (embora ainda tivesse um defesa entre ele e a baliza); mas, cometida a falta, acabou o perigo, com o avançado no chão: mesmo que o árbitro, como devia, tivesse assinalado a falta e mostrado o cartão adequado a Seitaridis, é presunção a mais pretender que da cobrança do livre a uns 40 metros da baliza de Baía resultaria fatalmente o golo da vitória do Estoril, a dois minutos do fim. Na verdade, era impossível alguém ter impedido o Estoril de ir mais além quando a própria equipa renunciou ostensivamente a isso, passando a se gunda parte a defender com 10 jogadores dentro da área a vantagem que adquira com os dois únicos remates que fez à baliza do Porto em toda a primeira parte. Quando se tem a sorte do jogo é preciso não se ser ingrato.
O FC Porto podia, de facto, ter ganho. Eventualmente mereceu até ganhar, pelo que tentou e pelo azar que teve. Mas houve diversos erros próprios que o impediram, também. Desde logo a inclusão do Hugo Leal e do Hélder Postiga no onze inicial, em prejuízo do Quaresma e doMcCarthy.OHugo Leal não tem claramente futebol para a primeira equipa do Porto; e o Postiga será apenas o terceiro ponta-de-lança, se não for mesmo o quarto, atrás do Hugo Almeida, e isto porque, muito embora seja bom tecnicamente, tem uma total alergia à função primeira de um ponta-de-lança, que é a de marcar golos. Depois, a inclusão prematura do Derlei, em nítida baixa de forma — como reconheceu depois o próprio Fernandez —, soou a tentativa desesperada de mobilização psicológica da equipa, o que é preocupante. E a própria escolha do Derlei para marcar o penalty foi uma insistência no erro: Jorge, o guarda-redes do Estoril, confessou que se lembrou do jogo da Corunha e apostou que o Derlei iria marcar o penalty para o mesmo lado e da mesma maneira. Não era difícil: também eu adivinhei e acho que todos adivinhámos. É dos tais erros infantis.
A defesa portista abanou demasiadamente, como se o enxerto de três novas unidades fosse suficiente para desfazer todos os automatismos existentes. O ataque revelou a sua já habitual dificuldade em marcar golos, muito embora a forma atabalhoada como o Estoril se defendeu toda a segunda parte tivesse proporcionado inúmeras ocasiões, em que apenas a falta de sorte ou a excepcional prestação de um guarda-redes inspirado tenham evitado vários golos. Mas o ponto verdadeiramente grave desta equipa, para mim, está no meio-campo. Já há semanas aqui o escrevi: tendo- se reforçado tanto e tão caro e com tantos nomes sonantes, o FC Porto de 2004/05 deixou desfalcado o meio-campo. Saíram o Deco, o Pedro Mendes e o Alenitchev, três dos cinco jogadores que frequentavam habitualmente o meio-campo que foi campeão europeu (basta pensar na final de Gelsenkirchen e na contribuição decisiva de Deco e Alenitchev...). E entrou, com estatuto de titular, apenas o Diego, que vem com ritmo e mentalidade de futebol do GNT, jogado com temperaturas de 30 graus, humidade de 85 por cento, relva alta e jogadores que, quando são fintados, deixam-se ficar a aplaudir a finta do adversário. Na Europa não se joga assim e o Diego está a aprendê-lo à sua custa e à custa da equipa. O meio-campo do FC Porto tem vivido assim apenas pelo esforço de quem já conhece o estilo necessário: o Costinha, que até está em baixo de forma, o Carlos Alberto, absurdamente desviado para funções de extremo, que não é minimamente, e o incansável Maniche, que não pode chegar para tudo. É pouco e os resultados estão à vista: o meiocampo defende mal, não lança o ataque, não acorre às segundas bolas, falha na célebre pressão alta e faz com que os sectores joguem longe uns dos outros, sempre com passes feitos no limite, sem circulação de bola, sem confiança no controlo do jogo, sem saber se há-de atacar por um centro sempre povoado ou pelos extremos, que tantas vezes não existem ou são falsos. Esta equipa do FC Porto, a meu ver, foi construída desequilibradamente: tem demasiados defesas-esquerdos, o que até forçou a impensável dispensa do Rossato, e apenas um defesa-direito; demasiados defesas- centrais, trincos e pontas- de-lança e poucos médios armadores e extremos.
Compreende-se a tentação de Victor Fernandez, que conhece mal a equipa e tão pouco tempo teve para experimentar todos os jogadores, em lançar mão daqueles que, à partida, pareceriam os desequilibradores natos. O mesmo fenómeno viveu e vive o Real Madrid e daí os resultados catastróficos que acumulou no ano passado e vai acumulando este ano. Florentino Pérez achou que poderia construir uma equipa só de solistas e todos virados para o ataque, mesmo que tivesse de meter os extremos a médios e pontas-de-lança, como Raúl, a jogar atrás dos avançados. O que conseguiu foi construir uma equipa que é um caso notável de ambiguidade e desequilíbrio funcional: uma defesa cujos laterais só pensam em atacar e cujos centrais não valem nada e um meio-campo e ataque que se confundem nas suas funções e onde se sobrepõem e atropelam algumas centenas de milhões de euros de todas as proveniências.
Salvas as devidas proporções, o mesmo parece estar a acontecer com o FC Porto desta época: há uma profusão de jogadores quase obrigatórios (quanto mais não seja pelo dinheiro que custaram...) e um défice de jogadores necessários. Tanto Fernandez como Camacho parece terem começado a aperceber-se disso e foi curioso ver, no Real Madrid que este fim-de-semana perdeu com o Espanhol, que ficaram de fora jogadores como Figo, Zidane, Beckham e Raúl, enquanto no onze inicial do FC Porto contra o Estoril ficaram de fora Diego, Quaresma, McCarthy e Derlei. Eis como a abundância de estrelas se pode transformar num problema real.
Sempre ouvi dizer que uma boa equipa se constrói de trás para a frente. E, salvo melhor opinião e reconhecendo todas as limitações que Victor Fernandez tem tido, parece-me que é isso que está a faltar no FC Porto. Por mais estrelas que estejam em campo, a imagem dada é a de um conjunto de jogadores que não funciona como equipa, que não sabe o que há-de fazer com a bola, que não tem esquemas ofensivos que vão para além da inspiração individual de cada um, que não sabe como tapar os caminhos ao adversário e que, se encontra pela frente uma defesa cerrada, como a do Estoril ou a do CSKA, rapidamente cai na falsa solução dos centros por alto, desde o meio campo. A chave está no miolo, volto a insistir, e atrevo-me, por exemplo, a perguntar ao Victor Fernandez se já considerou a hipótese de um jogador chamado José Bosingwa para tentar dar mais alguma consistência e pulmão ao meio-campo. Depois, caramba, não é preciso que seja o próprio jogador, como o Diego, a dizer que não se sente em condições para jogar, quando já era manifesto que o não estava; não se pode manter a titular um ponta-de-lança que passa um jogo inteiro sem fazer um remate à baliza só porque «lutou muito»; não se pode confiar a transformação de um penalty decisivo a um jogador só porque ele em tempos marcou outro decisivo e sem ao menos lhe dizer para não o repetir, tal e qual; é preciso estar definido quem marca os livres e porquê, enfim, muitas outras coisas que qualquer treinador sabe melhor que eu.
O Benfica é uma equipa, embora formada por muito fracos jogadores. O FC Porto é um fortíssimo somatório de grandes jogadores mas não é ainda uma equipa. E isso não se consegue por simples voluntarismo.
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