sexta-feira, outubro 01, 2004

O parente rico (7 Setembro 2004)

O mínimo exigível ao FC Porto, numa época em que dispõe de um orçamento que é mais do dobro do do Benfica e três vezes o do Sporting, é que vença tudo o que há para vencer, internamente. A vitória será, assim, banal; a derrota inexplicável

Dois mil adeptos, segundo rezam as crónicas, receberam no Dragão, entusiasmados, a última aquisição da época do FC Porto, Luís Fabiano. Compreende-se: o adepto comum quer é novos craques — verdadeiros, potenciais ou simplesmente ilusórios. E nada há, aqui ou lá fora, que mais gozo dê a um presidente de clube que apresentar as suas novas conquistas aos adeptos. Mesmo nestes tempos generalizados de suposta crise financeira dos clubes, comprar jogadores, por mais caros que sejam, continua a funcionar quase como o único critério, senão de uma boa gestão, pelo menos daquela que mais entusiasma os adeptos. E, por isso e até mais ver, os defesos continuarão a ser as épocas preferidas dos presidentes de clube, o seu território privado de protagonismo e glórias. A verdade é que há, no FC Porto ou noutro grande clube, dois mil adeptos para receber as novas estrelas da companhia mas não há dois mil adeptos ou sócios para olhar anualmente para as contas dos clubes e deitar-se a pensar quantos mais defesos de glória pode suportar o seu clube. A Europa está hoje cheia de clubes arruinados em sucessivos defesos onde o efémero gozo das aquisições de Verão foi depois pago com lágrimas de amargura. Aí está a arruinada Florentina a ter de recomeçar tudo do zero, partindo da IV Divisão italiana para tentar reconstruir a pulso, e agora com os pés assentes na terra, um clube dos mais antigos e prestigiados de Itália, desmoronado por dívidas e sonhos de Ptolomeu. Aí está o Corunha, que, pela primeira vez em muitos anos, não fez uma só aquisição neste defeso, sufocado que está por 120 milhões de euros de dívidas que não evitaram que, travado pelo FC Porto, falhasse o sonho da Liga dos Campeões e a derradeira tábua de salvação financeira. Dito isto, há que reconhecer que Luís Fabiano foi um bom negócio. Embora pessoalmente não me tenha entusiasmado por aí além das duas vezes que o vi jogar (continuo a preferir o sportinguista Liedson, cujo passe não vale nem 10 por cento do de Fabiano), a verdade é que um jogador do lote dos 18 habituais da selecção brasileira, apenas a troco do desembolso de 1,85 milhões de euros, é um excelente negócio. Resta saber o que vai a tal Global Investments, que ficou dona da fatia de leão do passe, exigir para rentabilizar o seu investimento—certamente que não investiram milhões de euros apenas pelo prazer de o ver jogar de azul e branco. O problema, aquilo que traz alguns portistas bastante apreensivos, não é, pois, o negócio específico de Luís Fabiano mas sim todos os outros que a Torre das Antas celebrou neste defeso. Por exemplo: no mesmo dia em que Luís Fabiano era apresentado em grande estilo e a troco de apenas 1,85 milhões de euros, pela porta dos fundos entrava discretamente mais um brasileiro, Thiago de seu nome, defesa-central destinado à equipa B e adquirido, segundo li, por... 2,5 milhões. Quinhentos mil contos por um defesa de 19 anos para a equipa B? Mas isso nem oReal Madrid paga! E, no mesmo dia, o último (felizmente!) para o fecho dos negócios saía pela porta dos fundos e por menos do que havia custado há dois meses, nada menos que o Rossato — o melhor defesa-esquerdo do campeonato do ano passado e que nem chegou a ter uma verdadeira hipótese de se mostrar. Aliás, como o Paulo Assunção, duas vezes comprado e duas vezes emprestado— desta logo após a compra. É difícil de entender como é que um clube português, cronicamente deficitário na sua gestão corrente, se pode dar ao luxo de comprar 12 jogadores numa época só para a equipa principal, quando apenas vende seis e mantém uma outra dúzia emprestada a outros emblemas, mas com os ordenados a serem pagos, no todo ou em parte, por esse mesmo clube. Ou como é que se pode dar ao luxo de comprar jogadores para imediatamente os emprestar, para imediatamente os vender a perder dinheiro ou pagar meio milhão de contos por um defesa de 19 anos, directamente destinado à equipa B. Bem sabemos que este foi um ano excepcional, único e irrepetível, em que subitamente a tesouraria do clube se viu inundada de dinheiro, como nunca nos mais de 100 anos de história do FC Porto. Para isso convergiram três factores, qualquer deles, por si só, quase impossível de repetir-se e virtualmente impossível de voltar a acontecer simultaneamente com os outros dois: a vitória na Liga dos Campeões, a ida do seu treinador para um clube estrangeiro, arrastando compras de jogadores que treinava, e a propriedade desse clube por parte de um multimilionário de ocasião, que seguramente não estará muitos mais anos nem no Chelsea nem em liberdade. Esse conjunto de circunstâncias excepcionais deve-as o FC Porto ao mérito desportivo, à sorte e a José Mourinho — um verdadeiro rei Midas desportivo e financeiro que por lá passou. À conta disso o FC Porto facturou neste defeso a impensável soma de 81,85 milhões de euros, entre cedências de jogadores e do próprio treinador. Se a esta soma descontarmos a parte dos passes que não pertenciam por inteiro ao clube e as comissões de agência de Jorge Mendes (que fortuna ele não deve ter feito!), e se acrescentarmos as receitas da Liga dos Campeões, concluiremos que o FC Porto obteve, na época que terminou em Julho, receitas extraordinárias entre os 60 e os 70 milhões de euros. Chegaria, provavelmente, para acabar de pagar o estádio e ainda pôr a zero o passivo acumulado em tantos anos em que as receitas não cobriram as despesas. E, porque se tratava de uma oportunidade única para o fazer, para poder arrumar de vez a casa e poder iniciar um novo ciclo em que o clube não tivesse de viver dependente de um novo Totoloto, teriam de ser extremamente ponderosas as razões para o não fazer. Até porque, convém lembrá-lo de vez em quando, o FC Porto é uma sociedade anónima, em que aos sócios deve ser explicado porque não têm direito a quaisquer dividendos de lucros tão extraordinários, se ainda por cima eles não são aplicados para liquidar o passivo mas antes em constantes novos investimentos em jogadores, alguns logo à partida excedentários. É óbvio que o FC Porto tem vários títulos e um prestígio internacional adquirido a defender e que, por isso e porque vendeu excepcionalmente bem, teria de ir às compras para de algum modo minimizar os danos resultantes das saídas de Deco, Alenitchev, Pedro Mendes, Paulo Ferreira e Ricardo Carvalho. Todos os portistas o entendem e todos, creio até, o exigiam. O problema está, como várias vezes tenho escrito, num critério que tende a privilegiar a quantidade sobre a qualidade: não tenho dúvidas algumas sobre a justeza das aquisições do Diego, do Pepe, do Seitaridis, do Ricardo Quaresma e até do Luís Fabiano. Mas dificilmente entendo a necessidade do Areias, do Raul Meireles, do Hélder Postiga (e ao preço que foi), do Hugo Leal e do Paulo Assunção. E jamais entenderei a lógica da compra, para imediata venda, do Rossato. O FC Porto acabou assim por gastar mais de 33 milhões de euros em compras — o que representa 7 vezes o investimento do Benfica e quase 15 vezes (!) o do Sporting. A questão que se põe é simples: havia necessidade? Nesta época que agora se iniciou, excepção feita a FC Porto, Nacional e a Académica, nenhum dos clubes da SuperLiga aumentou o seu orçamento relativamente ao ano passado. E, como os investimentos têm de ter retorno, o mínimo exigível ao FC Porto, numa época em que dispõe de um orçamento que é mais do dobro do do Benfica e três vezes o do Sporting, é que vença tudo o que há para vencer, internamente. A vitória será, assim, banal; a derrota inexplicável.

P. S. — Sempre achei que as claques organizadas serviam para berrar e não para expor qualquer pensamento articulado. A fantástica conferência de imprensa dos Super Dragões veio confirmá-lo. Cabe agora a estes portistas de gema provar, contra o seu clube, aquilo que ainda ninguém conseguiu provar: que o Mourinho rasgou mesmo a camisola do Rui Jorge. Façam favor.

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