1- Constituição americana — até hoje considerada como um dos melhores textos jurídicos jamais escritos — enumera o que os Founding Fathers chamaram de «verdades que temos como evidentes». Essas verdades são as absolutamente necessárias para se definir o que é uma sociedade democrática e um país livre. Nós, portugueses, aprendemo-las também, e de duas formas opostas: primeiro, vivendo cinquenta anos desprovidos delas; depois, vivendo há 36 anos em democracia, onde essas verdades que temos como certas se transformaram em direitos.
Indo directo ao assunto — a nova edição das escutas do Apito Dourado—o que está em causa são algumas verdades tidas como evidentes.
A saber: que, em democracia, vigora o Estado de Direito, o que significa que só os tribunais podem fazer justiça e fazem-na em obediência à lei, que é aprovada por um parlamento ou por um Governo legitimado pelo voto; que, em democracia todos têm direito à privacidade das suas comunicações, excepto se a sua intercepção for autorizada por um juiz, no âmbito de um processo-crime (e apenas nos crimes mais graves, previstos na lei) e com os estritos fins e procedimentos regulados legalmente. Ora, quer queiram quer não, o Apito Dourado foi julgado em vários tribunais e por diversos juizes e transitou em julgado sem que os principais réus fossem condenados: ou porque as escutas foram julgadas meio não admissível de prova ou meio insuficiente para fazer prova das acusações ou suspeitas. Nunca tive uma dúvida de que as escutas recolhidas nos processos, e apenas para eles, viriam a ser depois libertas aos poucos e em ocasiões escolhidas a dedo: é o Ministério Público que temos e cuja actuação neste caso me levou, aliás, a escrever que, se houvesse responsabilização ou pudor, o Procurador-Geral e a procuradora Maria José Morgado deveriam demitir-se quando chegou ao fim e se conheceram os nulos resultados processuais do seu tão estimado Apito Dourado, no qual gastaram, para nada, dezenas ou centenas de milhares de euros nossos. Se fosse nos Estados Unidos — onde os procuradores são eleitos e não são inamovíveis nem irresponsáveis — a sua obsessão litigante contra Pinto da Costa, sem fundamento de facto que o justificasse (conforme decidiram os tribunais), ter-lhes-ia provavelmente custado o lugar.
Mas isto é Portugal. Em Portugal, um caso julgado na justiça com a absolvição do réu pode continuar livremente a ser julgado nos jornais, com o fim de conduzir a uma sentença pré-determinada de condenação, em obediência aos interesses clubistas do futebol e como se nada tivesse acontecido no tribunal. Em Portugal, e com expressa violação da lei, divulga-se o teor de conversas telefónicas privadas gravadas para recolha de indícios em processo entretanto já terminado com a absolvição do escutado. E há gente que, mesmo sabendo que isto é crime, mesmo declarando-se democratas, não têm simples nojo de ir escutar as conversas alheias no Youtube, porque acham que assim é que se faz justiça — e não num tribunal com contra — prova, defesa, testemunhas e juizes de direito para julgar a causa.
Já sei que vão dizer que eu não oiço as conversas porque é mais prudente não as ouvir. Estão enganados: não as oiço porque, nos dois meses que trabalhei na Comissão de Extinção da PIDE, tive, por obrigação profissional, de ler várias transcrições de escutas telefónicas feitas pela PIDE a opositores políticos da ditadura. E o que vi deixou-me para sempre com uma sensação terrível de estar a entrar na intimidade alheia, percebendo logo aí que não há nenhum de nós que não se sentisse revoltado ao saber que as suas conversas telefónicas eram escutadas por outros — e já nem digo divulgadas depois na Internet ou jornais. Tenho a certeza de que os que para aí andam alegremente a fazer publicidade às escutas e a emitir juízos de valor públicos sustentados por elas — o António Pedro Vasconcelos, o José Manuel Delgado ou a Leonor Pinhão — não gostariam, certamente de ver as suas conversas privadas (por exemplo, com dirigentes do Benfica) divulgadas no Youtube. Sim, eu sei, vão-me dizer: «Mas nós não cometemos nenhum crime!» Pois, aí é que está: Pinto da Costa também não. Foi suspeito em quatro processos, acusado apenas num e absolvido. Quem diz que ele cometeu um crime não é, pois, a justiça, mas sim o Benfica, cujo presidente ainda há dias mostrou o respeito que tinha pela justiça...quando esta não vem de acordo aos seus desejos. Mas, até prova em contrário, o Benfica e os tribunais são entidades diferentes, com funções diferentes e acreditação diferente naquilo que fazem. Um pratica futebol e outros desportos, os outros aplicam a justiça. Não estou a ver o Supremo Tribunal de Justiça a disputar o campeonato de futebol da primeira divisão...
Admitindo que haja gente séria metida nisto, permito sugerir-lhes que pensem melhor no assunto: o problema, quando se aceita (sempre «excepcionalmente» ou por «interesse público», é claro), entreabrir a porta à violação de direitos fundamentais das pessoas, é que depois a porta já não fecha mais. Acham que estou a defender o FC Porto, mas não, estou a defender coisas bem mais importantes do que o futebol e as paixões clubistas. Dou um exemplo : Armando Vara pôs - me um pro -cesso cível (em que acabo de ser absolvido em primeira instância), onde reclama 250 000 euros de indemnização porque eu teria ofendido o seu «bom nome». Quando, em pleno decurso do processo, apareceram escutas altamente comprometedoras feitas a Armando Vara, no âmbito do caso Face Oculta/TVI, e, entre outros, o jornal Sol invocou o «interesse público» para divulgar ilegalmente as escutas, chegando mesmo a ignorar uma ordem de proibição do tribunal, eu não tive dúvida alguma em condenar veementemente essa divulgação. Porque nunca acredito em meios canalhas para atingir fins superiores e continuo a achar que o 25 de Abril se fez e a PIDE se extinguiu para que nunca mais se repetíssemos abusos sobre as pessoas que eram a marca da ditadura, de todas as ditaduras. Eu sei, infelizmente, que haverá sempre quem não resista, ou encontre prazer ou justificação, em espreitar pelo buraco da fechadura, escutar conversas alheias, divulgar boatos e infâmias sobre outros, enfim, 7a-var-se no bidé, para utilizar a imagem feliz do Rui Oliveira e Costa. E, pior ainda, sei que haverá sempre quem o faça com pretextos tão fúteis como a militância clubista, ou tão abjectos como a necessidade de prestar vassalagem à direcção de um clube de futebol. Não há nada a fazer: não é por vivermos em liberdade que todos aspiram a ser homens livres.
E, se escrevo este texto, sem esperança de convencer um só dos ayatoilas que por aí há, é para que, apesar de tudo, fique registada uma diferença: a causa deles não presta, não tem qualquer valor moral ou cívico. E, se tivesse, se realmente o que os preocupa é a «verdade desportiva» e é para isso que gostam de ouvir e divulgar escutas, eles que peçam à central que comanda estas operações que ponha on Une a mais reveladora e silenciada de todas as escutas do Apito Dourado: aquela em que a PJ, escutando o telefone de Valentim Loureiro, se deparou inesperadamente com um telefonema em que o seu então aliado, Luís Filipe Viera, combinava com ele o árbitro que deveria apitar um Belenenses-Benfica e culminando com essa enigmática (e jamais investigada) frase do presidente do Benfica: «Como sabe, tenho outros meios de resolver o assunto».
Estes pseudo moralistas que vão dar uma volta ao bilhar grande. Todos sabemos porque razão aparecem agora mais escutas (aliás, já sobejamente conhecidas): por causa do FC Porto-Benfica, no Dragão, que pode sentenciar a época a um Benfica que a começou muito mal. A mais de um mês de distância, a direcção encarnada pôs em marcha um aturado plano de pressão e desestabilização, que começou com o charivari sobre as arbitragens, continuou com aquele patético comunicado sobre a «verdade desportiva» e um apelo aos adeptos para que não fossem ver a equipa jogar fora de casa, uma ameaça à Olive-desportos por causa dos comentários da Sport TV, a privilegiada audiência com sua excelência o ministro da Administração Interna (um benfiquista), a ameaça de não comparecer no Dragão se o autocarro fosse atacado, e culminou com a nova campanha das escutas e ressurreição do Apito Dourado, a cargo dos comentadores ao seu serviço. É disto que se trata e nada mais.
Há mais de dez anos que aqui escrevo e tenho orgulho em poder dizer que me mantive intransigentemente fiel ao meu caderno de encargos, enunciado no primeiro texto que escrevi: aqui, eu não seria isento, o que seria o mesmo que ser hipócrita, visto que tenho uma paixão clubista que nunca escondi e visto que me contrataram para fazer opinião e não jornalismo — e especificamente para representar a opinião de um portista (por isso é que a coluna se chama Nortada). Tento, claro, ser isento, mas não tenho ilusões de que muitas vezes o não consigo. Mas, em contrapartida, prometi que seria sempre independente, livre, sem ordens nem recados de ninguém. E, em mais de dez anos, não recebi um pedido, uma sugestão, um dossier informativo, uma ajuda, o que quer que fosse, do meu clube. Não participei em reuniões de estratégia mediática nem encontrarão telefonema algum com a direcção do FCP comprometedor da minha independência. Talvez a tentação lhes tenha ocorrido alguma vez, mas eles sabem qual seria a minha resposta. E, quando vou ao Dragão , não me sento na tribuna de honra: sento-me no meu lugar, pago por mim. Por isso, não me venham dar música: só conseguirão substituir o Rui Moreira no Trio d'Ataque por algum vendido em estado de necessidade.
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