quinta-feira, novembro 02, 2006

Segundo balanço ( 04 Julho 2006)

«Faz hoje oito dias, procedi aqui a um primeiro balanço do Mundial, quando só faltavam jogar-se o Itália-Ucrânia e o Espanha-França dos oitavos de final. Escrevi então que «do ponto de vista futebolístico, não tem sido um Mundial bem disputado» e acrescentava que não entendia «que vantagens pode haver para o futebol em ver um Brasil jogar a passo, uma Argentina que deixa no banco esse prodígio que é o Leonel Messi», e que não me admirava que «com tantas cautelas, tanta disciplina táctica e tanta administração científica dos resultados», a Alemanha viesse a ganhar, no fim.

Quanto aos restantes, Portugal à parte, escrevi que «a França tem sido a chatice profunda que se vê, a Itália está cada vez mais igual a si própria, isto é, jogando um futebol tão cínico que chega a ser irritante, a Espanha, que começou em grande estilo, já tratou de abrandar o ritmo, não fosse os seus fãs ficarem mal habituados, e a Inglaterra alterna dois tipos de jogo: ou sem ideia alguma, ou com a ideia fixa de atirar a bola por alto para os dois metros de Crouch». E citava, criticando-a, a frase de Carlos Alberto Parreira, que parecia resumir a filosofia técnica deste Mundial: «espectáculo é ganhar!».

Oito dias depois, Carlos Alberto Parreira foi para casa, sem espectáculo e sem vitória. Pekerman pagou a sua cobardia relativamente a Messi e ao futebol-espectáculo com a eliminação, ditada pela sorte (ou ciência, no caso de Ricardo) dos penalties, às mãos de uma Selecção alemã com muito menos futebol e muito menos bons jogadores. A Espanha para casa foi também, tendo trocado a audácia inicial por um pragmatismo fatal. E a Inglaterra caiu pela quinta vez consecutiva num desempate por penalties, depois de confirmar que toda a sua arrogância era puro marketing— como tantas coisas outras entre as vedetas inglesas e as suas insuportáveis wags. Restaram, pois (alguém tinha de restar...), a Alemanha, após um jogo mortal de chatice contra a Argentina, e a Itália, em mais uma exemplar demonstração de cinismo. E a França, essa sim, a excepção à regra geral e ao que até aí tinha feito. Em minha opinião, a França fez contra o Brasil o melhor jogo de um candidato ao título que eu vi neste Mundial. Pouco importa se foi uma ressurreição fugaz (mas já ensaiada contra a Espanha) ou um assomo de categoria e orgulho ferido de uma Selecção a quem já haviam feito o obituário.

O que sei é que — e muito embora, o meu coração, como o de quase todos os portugueses torcesse pelo Brasil — não tardei a mudar de campo, assim que comecei a ver a displicência estéril do futebol brasileiro face à vontade e superior categoria dos franceses. Ronaldinho estreava a sua nova bandelette e havia, nos meninos de ouro do Brasil, muita preocupação com os penteados, a amarração dos cabelos, as tatuagens e a cor das botas — toda essa parafernália de acessórios que caracteriza as vedetas futebolísticas de hoje. E foi então que, lá do Purgatório onde o imaginavam em definitivo repouso, emergiu Zinedine Zidane — sem tatuagens, nem bandelette, nem sequer cabelo — para assinar com caneta de ouro o livro de memórias que ficará deste Mundial e resgatar, mesmo antes de dizer adeus aos estádios, a honra e o fascínio do futebol. Porque há e haverá sempre dois tipos de adeptos de futebol: os que, sobretudo, são adeptos das suas cores, e os que são, antes de tudo o resto, adeptos do futebol. Ambas as coisas não são incompatíveis, embora às vezes pareçam. Foi para os segundos que Zidane quis mostrar, pela última vez, a razão da sua paixão.

A vitória serviu à França e aos franceses — mesmo àqueles que não gostam de futebol ou que nada percebem do jogo e fingem perceber nestas ocasiões — mas a exibição foi, sobretudo, um bálsamo para todos aqueles, no mundo inteiro, que um dia sonharam poder jogar futebol assim. Durante a transmissão do Portugal-Inglaterra ouvi o comentador referir que Scolari teria dito, na linha de pensamento de Par - selecções que jogavam bonito já tinham ido para casa. No dia seguinte, chorando o afastamento do Brasil, Fernando Calazans escrevia no Globo: «Felipão tem razão: muita gente que está jogando feio continua na competição.

Por exemplo, a sua própria Selecção, a selecção portuguesa, que fez um jogo horroroso com a Inglaterra...». Convenhamos que a frase, sobretudo vinda de um brasileiro, não é justa: entre os que chegaram aos quartos-de-final, a selecção portuguesa era aquela a quem, pelo seu historial comparativo, menos era exigível que viesse para jogar bonito. Ainda se nisso tivesse sido a excepção! Mas o que Scolari fez foi antecipar o que iria ser este Mundial e qual era a receita que todos os candidatos levavam estudada para tentar sobreviver até ao fim. Curiosamente ou talvez não, os únicos que ouvi, do nosso lado, dizerem que o Portugal-Inglaterra tinha sido um jogo mau e sem emoções (penalties à parte, é claro), foram três homens profundamente ligados ao futebol, mas que, todavia, não têm o dever jornalístico de tentar ser rigorosos no relato dos factos. Foram eles Humberto Coelho, comentando o jogo em directo para a SIC; Rui Costa, cujos comentários televisivos e escritos têm sido uma revelação; e José Mourinho, cuja lucidez e capacidade interpretativa a comentar um jogo já conhecíamos desde o Euro-2004.

De resto, lendo a generalidade da imprensa desportiva portuguesa, parece que Portugal fez uma exibição para a história do futebol português, num jogo fantástico. Ora, e só para não ir mais longe, o Portugal-Holanda foi, quer na emoção, quer na qualidade do futebol, quer nos riscos assumidos por ambas as equipas e na atitude da equipa portuguesa, incomparavelmente melhor. Eu sei que a emoção da hora não ajuda à frieza de análise. Mas não a desobriga. O que todos deveríamos desejar agora é que Portugal vença amanhã a França, depois de um bom jogo e de uma grande exibição. E que faça o mesmo domingo, na final. Se não puder juntar o útil ao agradável, paciência: que fique o útil. Mas não vamos, por isso, pretender que ninguém, na hora da vitória, é capaz de distinguir um bom jogo de um mau jogo e que isso lhe é, até, indiferente. No fim de contas, depois deste Mundial e de todos os outros que se lhe hão-de seguir, o que tem de continuar para sempre é o futebol.»

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