Dirigentes que passam a semana a acirrar os ódios, antes de enfrentar o adversário e que fazem gestos obscenos para o público; uma equipa que entra a jogar duro e feio até arrumar o melhor jogador adversário; e um árbitro que assiste, impávido. E tudo deve passar impune?
PEÇO desculpa ao Vítor Serpa e a todos os benfíquistas cuja opinião respeito, mas eu não posso concordar com o raciocínio que está subjacente ao editorial que ele ontem aqui assinou. Escreveu ele: «Era legítima a esperança que, terminado o jogo no Dragão, FC Porto e Benfíca não se envolveriam numa discussão que continuasse o destrambelho de toda a semana... seria do mais elementar bom senso dar o caso por encerrado... E, se ambos insistirem, ao menos que a Liga encontre «maneira de castigar os dois, pelo mal que andam a fazer ao futebol. »
Não poderia estar mais em desacordo: não era legítima a esperança que aquilo que de muito grave rodeou o FC Porto-Benfica de sábado morresse após o jogo; passar uma esponja sobre tudo o que aconteceu, não seria um sinal de bom-senso mas de impunidade; castigar ambos, não seria uma justiça salomónica, mas apenas hipócrita. Aconteceu que um dos lados passou a semana a insultar o outro; que uma das equipas entrou em jogo com uma atitude de intimidação e provocação a roçar a arruaça; um jogador de uma das equipas teve uma entrada de uma violência extrema sobre um adversário, arrumando-o para o jogo e para o futebol, durante os próximos meses, com graves prejuízos financeiros e desportivos para o seu clube; um dirigente de um dos clubes provocou o público com gestos obscenos; e um árbitro consentiu tudo o que viu numa atitude de vamos lá, que isto não tem importância. E tudo isto foi feito apenas por um dos lados em confronto: o Benfica.
É fácil dizer que o bom-senso mandaria encerrar o caso ou então castigar ambos por igual. Mas seria o mesmo que um ladrão assaltar uma casa, espancar o marido, violar a mulher, roubar as pratas e atemorizar os filhos e, à saída, dizer para o dono da casa: «Vamos por fim a isto e decretar tréguas». Talvez se possa achar de bom-senso não reagir, mas achar justo, isso é que, desculpem-me lá, só mesmo por temor reverenciai ao ladrão
Luís Filipe Vieira passou a semana a atacar, ofender e provocar o presidente do FC Porto e o clube. Na semana anterior, Pinto da Costa reagiu às provocações, mas na semana que passou, antecedendo o jogo, manteve-se em silêncio, não ajudando a contribuir para a criação de um clima de crispação e ódio entre ambos os clubes e os seus adeptos. Agora é fácil mandar calar os dois, mas teria sido mais útil e mais pedagógico ter mandado calar o presidente do Benfíca, quando ele era o único a acirrar ódios e destilar insultos. Sim, eu sei, que ele tinha uma eleição difícil na sexta-feira: candidato único, precisava de atrair as atenções para que alguém fosse votar e nada melhor para tal do que atacar o FC Porto — é uma receita clássica dos presidentes do Benfíca, raramente com sucesso, conforme o outrora muito idolatrado Vale e Azevedo demonstrou. Mas ninguém tem culpa que, no segundo maior clube do mundo, com 160.000 sócios, menos de 8.000, representando menos de 5%, se tenham dado ao trabalho de votar em Vieira, apesar das facilidades do voto electrónico, nas casas e etc. (Sócrates também era candidato único ao PS e votaram nele 25.000 dos 80.000 militantes registados)... Se a ideia de Vieira era arranjar problemas para si próprio, para depois se arvorar em vítima, não o conseguiu: pelo terceiro ano consecutivo, ele só pode reconhecer que esteve no camarote presidencial do Dragão «sem problema algum». Pergunto-me se o mesmo poderia dizer Pinto da Costa, se se arriscasse à experiência...
Na atitude habitual de comigo o puto vai sempre atrás, também o inacreditável José Veiga, (juntamente com Valentim Loureiro, um dos mais bem apanhados no Apito Dourado), veio chegar-se à conversa, tendo até o supremo desplante de falar no Apito Dourado. E acabou a fazer aquele eloquente gesto para o público do Dragão que Cristiano Ronaldo fez para o da Luz e que tanta popularidade lhe vale lá por aquelas bandas. Não adianta a Vieira falar em transparência, exigência, isto e aquilo: enquanto o seu José Veiga estiver no futebol, não há credibilização possível - nem para o que diz Vieira, nem para o Benfica, nem para o futebol.
Enfim, aquilo que mais interessa, o que verdadeiramente me dói e revolta. Os meus leitores sabem o quanto vinha elogiando, deslumbrado, o génio desse miúdo Anderson. Não apenas nem sobretudo, porque ele veste a camisola do meu clube, mas porque ele faz parte daquela rara categoria de jogadores que tornam o futebol um espectáculo incomparável, arrebatante, lindo. Quem passa à história e divulga o futebol são jogadores assim: é o Eusébio e não o Stiles, o Pele e não o Morais, o Cruyft e não o Nando, o Anderson e não o Katsouranis, o génio e não o seu carrasco.
Pois o miúdo acaba de ser arrumado — no mínimo por quatro meses, na realidade, hão-de ver, por uns seis. Foi arrumado, varrido dos estádios e do nosso deslumbramento, para que no seu lugar fiquem os caceteiros ou os jogadores medíocres, de que alguns treinadores tanto gostam. E porquê? Porque era bom de mais, reduzia à insignificância os que tinham que o marcar e perseguir. Porque o seu talento ofendia a mediocridade, desequilibrava as forças em campo, desesperava o facciosismo clubístico. Sem ele em jogo, os adversários podem até afectar um pesar de circunstância, mas, lá no fundo e no íntimo, esfregam as mãos de contentes: o adversário ficou mais fraco e os medíocres têm mais chances. E viva o futebol!
Há várias hipóteses para explicar aquela entrada para arrumar de Katsouranis. Premeditação, resultado de uma estratégia táctica? Não, sinceramente, não acredito, apesar da coincidência ser terrível: em três Benfica-Porto dos últimos dois anos e meio, foram arrumados, com entradas semelhantes, três jogadores do FC Porto que eram decisivos na altura — Diego (um mês de paragem), Lisandro (um mês e meio) e Anderson (três a seis meses). Mas, se calhar apenas e só pelo carácter de Fernando Santos, eu não acredito nesta sinistra hipótese.
Outra hipótese, a benevolente: foi sem querer. Também não acredito. Não foi sem querer. Não, não deu na bola (vejam a decomposição das imagens no Jogo de ontem). A entrada era escusada, a jogada passava-se na lateral do meio-campo, sem perigo para o Benfica, e nada justificava aquela violência, que, conforme o relatório médico, causou fractura grave do perónio por «traumatismo directo» (isto é, pela porrada directa na perna), rotura dos ligamentos do tornozelo e da membrana de ligação.
Resta portanto perceber o porquê daquela violência. A minha tese é que se tratou de uma atitude de violência induzida. Porque Anderson é um génio que dá cabo da cabeça a jogadores banais como o Katsouranis, porque o Benfica estava a perder por 2-0 aos 20 minutos e de cabeça perdida. Mas também pelo clima de incitamento ao ódio que toda a semana foi atiçado pelos dirigentes do Benfica. E é por isso que nem uns nem outros podem passar impunes, se é que alguém pretende verdadeiramente defender o futebol-espectáculo. É face aos casos concretos que se mede a seriedade das propagadas boas intenções. O Inferno está cheio delas.
Mas há outro protagonista desta vergonha pública que não pode passar impune: o Excelentíssimo Senhor Lucílio Baptista. Que ele seja, manifestamente, o mais incompetente dos árbitros portugueses e continua a ser chamado para os grandes jogos envolvendo o FC Porto, já é grave. Que, de há três ou quatro anos para cá, seja, de encomenda, nomeado para todos os derbys do FC Porto com o Sporting e o Benfica e sempre, sempre, prejudicando o FC Porto, e continuando a ser nomeado, é sintomático. Que seja um dos suspeitos do Apito Dourado e continue como uma eminência parda da nossa arbitragem, é chocante. Mas que assista de braços cruzados a duas entradas que arrumam com dois jogadores do FC Porto em dois jogos consecutivos contra o Benfica no Dragão, sem ao menos mostrar uma amarelo, isso já é mais do que grave: é insustentável para a integridade física dos jogadores. Este árbitro não respeita o espectáculo nem os jogadores. Que apite em Malta ou em Chipre, aqui não. Reconheço que este texto não tem, porventura, o bom-senso recomendável. Mas se o bom-senso é pactuar ou amochar perante o discurso grosso do Benfica, então que se lixe o bom-senso! Jogadores como o Anderson merecem que quem gosta de futebol os defenda. E não é só com lágrimas de carpideira.
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