Os desmancha-prazeres
Está escrito algures que os dirigentes do futebol português estão na modalidade não para a servirem mas para se servirem dela: para satisfazerem as suas vaidades pessoais, a sua sede de fama e protagonismo, facilitarem as suas oportunidades de negócios e conquistarem, através do futebol, uma acreditação social que os seus méritos não alcançavam por si. Ano após ano eles esforçam-se por reclamar para si todo o mediatismo, por se convencer de que são gente importante e respeitada, por insinuar, acusar no vazio, berrar e ameaçar, enfim, por tudo fazer para que o povo do futebol não possa viver tranquilamente apenas e só a alegria dos jogos. O futebol, para eles, é um campo de batalha onde se combate sem educação nem grandeza, onde vivem a acusar todos de banditismo, excepto eles próprios, onde tudo lhes é motivo de desconfiança, de insinuação, de calúnia, excepto as vitórias dos seus próprios clubes.
1 Ainda este Campeonato não tinha começado e já o presidente do Benfica o declarava «falseado». Apenas porque, contra a sua expectativa, o Benfica não foi integrado na direcção da Liga de clubes, tendo sido substituído pelo Sporting. Também o FC Porto ficou de fora, mas isso já não é motivo para desconfiar da seriedade do Campeonato — assim como não o era na anterior direcção da Liga, onde Porto e Sporting estavam de fora e o Benfica tinha representantes em todos os órgãos. Mas bastou que o novo presidente da Liga tivesse deixado de fora o Benfica e tanto ele como o próprio Campeonato passaram a estar sob suspeita.
2 A mesma coisa com o Nacional da Madeira, cujo presidente anunciou também a sua entusiástica adesão ao «projecto» e «ideias» da candidatura de Hermínio Loureiro. Mas, assim que descobriu que, em vez do Nacional, era o Marítimo que integrava a direcção de Hermínio Loureiro, adeus «projecto» e adeus «ideias», tudo passou a ser uma vigarice e uma ilegalidade súbita tão grande que o presidente do Nacional interpôs uma providência cautelar que suspendeu a tomada de posse da direcção eleita, mantendo-se em vigor a anterior direcção Boavista/Benfica.
3 O Gil Vicente ganhou em campo e pelos resultados obtidos, o direito a continuar na Superliga, em detrimento do Belenenses. Mas fez batota: utilizou um jogador que não podia segundo os regulamentos, fê-lo passar por profissional quando ainda tinha o estatuto de amador e, quando não conseguiu convencer a justiça desportiva da sua razão, recorreu aos tribunais comuns, fingindo que era o jogador a fazê-lo, para contornar a lei. Em todo o processo Mateus o Gil Vicente actuou sempre de má-fé, assessorado por bons advogados e fazendo tábua-rasa dos regulamentos, nacionais e internacionais, que vedam o acesso à justiça comum em casos de contencioso desportivo. Uma competição desportiva é uma associação livre de competidores: ninguém é obrigado a participar, aceitando as regras da competição; mas, se participa, tem de aceitar as regras em vigor. Sobretudo quando, como é o caso, essas regras foram feitas e aprovadas pelos clubes, como o Gil Vicente.
Sábado, através de uma providência cautelar no tribunal administrativo, o Gil Vicente quase conseguia suspender o Campeonato. Conseguiu apenas suspender os jogos em que ele, o Beleneneses e o Leixões (aparecido oportunistamente à última hora) participam. Embriagado pelo súbito poder e protagonismo conquistado, um tal de Fiúza, presidente do Gil, lançou-se então numa rábula patética de 48 horas non-stop de conferências de imprensa, entrevistas e comunicados, acabando por obrigar os jogadores a meterem-se no autocarro para vir a Lisboa apresentar-se no Estádio da Luz fechado, para a seguir desistir de se apresentar, anunciar que ia antes levar os jogadores ao Zoo de Lisboa e, finalmente, metê-los outra vez no autocarro e regressar a casa, 800 quilómetros feitos apenas para satisfazer a vaidade do Sr. Fiúza. Brincou com a dignidade profissional dos jogadores, mas o que é pior é que, quando já não conseguir atrapalhar nem empatar mais os outros e quando, como é de esperar, o Sr. Fiúza acabar irradiado do futebol e o Gil suspenso por vários anos, ele terá também brincado com o posto de trabalho dos seus jogadores.
4 Estava-se nesta trapalhada completa, num momento em que se requeria que o bom senso prevalecesse, quando o presidente do Benfica resolveu também ajudar à festa, anunciando que o Benfica iria entrar em campo para jogar contra o Gil, contra o Belenenses ou contra ambos, porque «o polvo também já chegou à organização dos jogos». Mas, surpreendentemente, no dia seguinte e através de um comunicado escrito num português indigno de alunos da 4ª classe, o Sport Lisboa e Benfica comunicava à nação que afinal já não jogava, porque se tratava de um clube «que sempre respeitou a lei e a verdade desportiva». E rematava ao estilo grandioso e autolaudatório que é o de Luís Filipe Vieira: «Percebe-se desta forma a razão pela qual o Sport Lisboa e Benfica e os seus dirigentes encetaram uma cruzada pela regeneração da Liga, que revela total incapacidade para dirigir os seus destinos». Ah grandes cruzados!
Só lhes faltou acrescentar que a Liga que revela total incompetência é aquela que ainda está em funções e que integra o Benfica na sua direcção, na mesa da Assembleia-Geral, no Conselho de Disciplina que foi incapaz de resolver o caso Mateus com celeridade e dignidade e no próprio cargo de director executivo.
6 De férias no Algarve, o tal benfiquista director executivo da Liga, Cunha Leal resolveu também fazer saber à distância da sua douta e tardia opinião, através de um comunicado igualmente notável de redacção. Valentim Loureiro respondeu-lhe a matar: que não estivesse de férias e não as tivesse prolongado, justamente quando era maior o trabalho e a agitação na Liga de clubes, onde é um dos quadros mais bem pagos. Terminadas as férias, ele tinha agendada para ontem uma conferência de imprensa, que ajudará certamente a resolver todo este imbróglio. Quarta-feira será a vez de a direcção da Federação, terminadas também as férias dos seus membros, entrar a matar para resolver o assunto, que agora, e via FIFA, já lhes queima as barbas.
Como era de esperar, pois, o futebol passou para segundo plano. Esta gente, estes preclaros dirigentes que mandam nos clubes e no futebol português, ocuparam todo o centro do palco e substituíram a alegria dos estádios pela emoção das providências cautelares, recursos, despachos, reclamações, comunicados e entrevistas grandiloquentes. Que estourem de vaidade, já que não estouram de incompetência!
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