O facto de ninguém, claramente, ter merecido mais do que os outros, não faz do Benfica, por direito natural ou privilégio de grandeza popular, um campeão justo. Por isso, digo: peçam-nos compreensão e aceitação pela sua alegria, mas não esperem que lhes demos os parabéns
«Espero que ganhe o pior!»
Manuel Alegre, confiando numa vitória do Benfica, no jogo contr ao Sporting
1-Para os meus muitos e grandes amigos benfiquistas a hora é de alegria ou, ao menos de alívio. Saber que eles estão felizes é, em horas destas, a consolação dos que acabam de ser desportivamente derrotados.O Benfica é um grande clube e eles são grandes amigos. De norte a sul do país, milhares ou milhões de benfiquistas, pequenos, velhos, de meia idade, tiveram enfim o dia de felicidade pelo qual esperaram onze anos. Quem gosta de futebol, quem compreende que o atractivo do futebol está na competição e esta não existe se não houver rotatividade, compreende e aceita que hoje estejam uns felizes e amanhã outros. Assim como me fez impressão a profunda tristeza e decepção dos sportinguistas, que desceram dos céus aos infernos em apenas dez dias, assim também compreendo, aceito e respeito, como não podia deixar de ser, a alegria dos benfiquistas todos.
Sabendo eu o que o futebol significa como descompressor de tantas e tantas tristezas, como matéria de sonho palpável contra a frustração de tanta realidade, só posso respeitar um clube que canaliza em si uma fatia decisiva de tanta alegria e tanto sonho. Essa é, indesmentivelmente, a força do Benfica. E não esquecerei nunca que, num passado já longínquo, as vitórias europeias do Benfica eram a única réstia de luz para todos,mas todos mesmo, no meio das trevas do silêncio e da mediocridade reinantes em Portugal.
Mas ser grande — grande em número de adeptos e seguidores não constitui,em si mesmo,um motivo de mérito ou de excelência. E, menos ainda, concede direitos de privilégio ou a expectativa de exigir e esperar a vassalagem geral. É aí que muitos grandes se transformam em pequenos e muitos pequenos se transformam em grandes. Por mim, no futebol e em tudo o resto, o que mais me incomodou nunca foi estar com os pequenos, mas sim com os grandes, e tenho vivido sempre com a tranquila certeza de que só existe justiça onde existe igualdade de tratamento. Às duas da manhã de domingo (depois disso, já não sei), as três estações de televisão nacionais continuavam a transmitir ininterruptamente, após sete ou oito horas de emissão, a festa do Benfica—primeiro antecipadamente e depois ao minuto e ao pormenor. Todas, até a televisão pública que é paga por todos, benfiquistas e não benfiquistas, e que nunca dedicou uma cobertura sequer parecida às recentes vitórias internacionais do FC Porto—muito menos, obviamente, às nacionais. Pergunto apenas: se tem sido o Porto a ganhar no domingo, assistiríamos a coisa semelhante? De repente, pareceu-me recuar no tempo, à cobertura dos grandes acontecimentos «nacionais e patrióticos » do Estado Novo, quando uma onda de unanimismo se impunha a uma só voz ao país inteiro. Jornalistas e comentadores que tinham passado um ano inteiro a fingirem-se neutros ou isentos, «passaram-se» em directo, assumindo as cores benfiquistas sem problema nem decoro, chegando até a ver um de cachecol no estúdio. Supostos especialistas de arbitragem esforçavam-se por nos apresentar como nítido o penalty que deu o golo ao Benfica no Bessa, enquanto os realizadores trataram de sanear as imagens de um possível penalty a favor do Boavista não assinalado, uns e outros aparentemente crentes de que toda a Gália já estava rendida ou que os desafectos das suas cores não tinham visto nada, eram cegos e desmemoriados. Num dos ecrãs de televisão, o benfiquista Rui Santos, no papel de comentador isento, proclamava que o «Benfica é um clube universal» (já não deve viajar há muito tempo...) e, como tal, os seus adeptos tinham o direito de se manifestar onde quisessem sem ser incomodados — mesmo que alguns tenham escolhido o lugar emblemático das comemorações portistas,um ou outro até, como vi na televisão, com cartazes ou cachecóis rezando «Odeio o Porto» ou «Porto é merda»,numa provocação rasteira e dispensável, destinada exactamente a atrair sarilhos. Reproduzida na imprensa escrita do dia seguinte, foi-se espalhando uma insidiosa onda de arrogância e intolerância, que aliás se sentia desde o inicio da época, e que, compreendem-no os benfiquistas ou não, é aquilo que representa hoje o reverso da vitória do Benfica: ter perdido o respeito e a admiração histórica que muitos adeptos de outros clubes lhe tinham. Porque, se é preciso saber perder, também é preciso saber ganhar.
Por mim falando, a vitória do Benfica no campeonato, não me incomodou mais de meia hora. Primeiro, porque nunca esperei que o Porto fosse campeão este ano, como várias vezes o escrevi; segundo, porque registei e nunca esqueci a afirmação feita pelo presidente do Benfica, logo a abrir o campeonato, que, fosse como fosse, o Benfica seria campeão este ano. E foi como o foi. Lamento por aqueles dentro desta equipa do Benfica, a começar pelo seu treinador, que não tenho dúvidas que trabalharam duramente e deram o melhor de si para chegar ao título,mas não consigo deixar de dizer que é a primeira vez em muito tempo que não reconheço mérito ao campeão. E tenho a certeza que não encontrarão em Portugal inteiro um só portista e um só sportinguista que reconheça neste Benfica um justo campeão. Eu vejo futebol há mais de quarenta anos, joguei futebol juvenil e amador muitos anos, e creio que sei reconhecer a marca dos campeões, quando uma equipa joga um futebol ou bonito ou vencedor, ou ambas as coisas.E o Benfica não joga nenhum deles. Consigo lembrar-me da forma como o Benfica ganhou inúmeros jogos neste campeonato, mas, se me puser a pensar, não consigo lembrar- me de mais do que dois jogos que tenha ganho com mérito indiscutível. É muito possível e manda a verdade que o diga, que se tem sido campeão qualquer um dos outros, a começar pelo meu Porto, o mesmo poderia ser dito: que não o tinha justificado em campo.Mas o facto de ninguém, claramente, ter merecido mais do que os outros, não faz do Benfica, por direito natural ou privilégio de grandeza popular, um campeão justo. Por isso, digo: peçam-nos compreensão e aceitação pela sua alegria, mas não esperem que lhes demos os parabéns.
2- Mais tarde terei ocasião de falar mais a frio sobre esta época do FC Porto. Sobre o que anteontem aconteceu, há pouco para dizer. Do mal o menos: poderíamos ter acabado desde o 1.º até ao 4.º lugar e acabámos em 2.º, com entrada directa na Liga dos Campeões. Também é verdade — e obviamente ninguém disso fala — que poderíamos, ao menos ter prolongado o sofrimento do Benfica mais um pouco, se o juiz-de-linha do Dragão não tem invalidado de forma incrível o que teria sido o segundo golo contra a Académica. Mas também isso era de prever: os sucessivos tiros no pé dados por esta equipa este ano, andaram sempre a par com as sucessivas e cirúrgicas decisões erradas da arbitragem e a perseguição sem tréguas da Comissão Disciplinar da Liga. Resta que, na sua despedida, José Couceiro—que passou pelo clube com uma imensa vontade, uma imensa dignidade e sem tempo nem calma para mostrar melhor —despediu-se sem glória, pagando o preço da falta de ousadia de entrar em campo, num jogo para ganhar e onde só a vitória interessava, com um avançado e meio (visto que um ponta-de-lança alérgico ao golo, como o Postiga, em termos práticos só pode contar por meio), com o maior desequilibrador (o Quaresma) a suplente, e com o eternamente inútil Diego a emperrar todo o jogo do Porto e a lançar os contra-ataques da Académica. Enfim, resta a grande consolação de saber que, a menos que venha aí uma nova catadupa de asneiras na formação da equipa, para o ano é impossível ser pior.
3- E agora, com o apaixonado do futebol, só desejo mais uma coisa para esta época: que deixem o Vitória de Setúbal bater-se com armas iguais pela Taça de Portugal.
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