sábado, fevereiro 28, 2004

Como é ténue a fronteira ( 27 Janeiro 2004 )

NINGUÉM deveria morrer assim, em directo, perante o olhar impúdico e instantâneo de milhões de pessoas. Ninguém deveria morrer aos 24 anos, ninguém deveria morrer a jogar futebol, num estádio, perante a multidão. E depois, apesar de tudo, Mikki Fehér teve uma morte linda: morreu a fazer o que mais gostava, morreu a jogar futebol perante um estádio pronto a saudá-lo como um artista, morreu depois de sorrir à vida, morreu de um só golpe, e não consumido aos poucos pela morte, e, já morto, enquanto tentavam em vão reanimá-lo, terá escutado o último cântico de apoio e de homenagem dos adeptos que entoavam o seu nome e acompanhavam o cântico ao ritmo de palmas, como se elas pudessem conseguir o milagre de ressuscitar o seu coração fulminado. Como as palmas dos jogadores do Sporting no dia seguinte, como as muitas palmas que iremos escutar este fim-de-semana nos estádios do país, no final do minuto de silêncio durante o qual iremos rever, como num pesadelo, aquelas insuportavelmente cruéis imagens. Há 30 anos, quando Fernando Pascoal das Neves, dito Pavão, o melhor jogador de então do FC Porto, caiu fulminado ao minuto 13 do FC Porto-Vitória de Setúbal, nas Antas, não havia televisão a transmitir em directo nem as imagens da sua morte foram registadas para mais tarde correrem país e mundo. No exacto minuto em que ele caiu morto com a camisola do meu clube, eu estava a jogar futebol de 5 com amigos, no terreiro do castelo de Monsaraz, e foi através do relato de um transístor de um ocasional espectador que tomei conhecimento da tragédia. Relatava o Nuno Brás («este tão infausto acontecimento », nunca mais me hei-de esquecer das suas palavras) e foi o seu relato e o relato dos jornais no dia seguinte que formaram na minha cabeça o «filme» da morte de Pavão. Agora foi bem pior, tivemos direito a ver tudo em directo, uma vida que se apagava e que desesperadamente não conseguia ser reanimada, ali, à nossa frente, assistindo minuto a minuto a uma tragédia que se adivinhava desde o primeiro instante em que ele caiu de costas em câmara lenta, despedindo-se da vida e olhando um céu nocturno sem estrelas, antes de pousar suavemente a cabeça como se fosse apenas dormir. Nunca mais nos curaremos destas imagens. A morte é assim: não pede licença, não dá aviso, não escolhe vítimas. Vem à traição, como ave de rapina, interrompe até um sorriso, os mais ambiciosos projectos, os mais sonhados sonhos, a mais leve juventude, para nos lembrar que a vida é só uma distracção passageira da morte, amais ténue linha entre a alegria e a inconsciência de uma vida que só existe porque o sangue corre nas veias e o instante súbito em que o coração deixa de bater e tudo submerge num definitivo e eternamente inexplicável buraco negro. Nós, portugueses, porém, temos este defeito moderno de não acreditar na fatalidade das coisas que não têm sentido se não para aqueles que acreditam no transcendente. Tem de haver sempre uma explicação aceitável ou, na ausência dela, um culpado: a ambulância que demorou a entrar e veio em marcha-atrás, o desfibrilador que não estava a postos na linha lateral, os meios (sejam eles quais forem) que não estavam disponíveis e ai Jesus que vem aí o Euro. Tomara qualquer vítima de um acidente cardio-respiratório súbito poder ter os médicos e paramédicos, os meios e a velocidade de intervenção de que dispôs Mikki Fehér! Simplesmente, estava escrito que aquele era o seu último dia, a última hora, o último minuto. É assim a vida, é assim a morte. Entre tantas coisas apesar de tudo bonitas que se viram no meio daquela tragédia inominável, sobraram alguns repórteres infelizmente obcecados em encontrar o «culpado», como se estivessem perante um enredo de Agatha Christie e não perante a mais pura e simples das tragédias. Como sobrou o estupor de saber que houve uma centena de adeptos que esperaram até às três da manhã o autocarro do Benfica, no seu regresso à Luz, para descarregarem uma ira irracional sobre os jornalistas presentes. E, porquê, pergunta-se? Por os jornalistas serem responsáveis pela morte de Fehér? Por quererem filmar ou fotografar os jogadores? Mas os adeptos não estavam ali também para os ver e sem sequer terem como desculpa a necessidade de informar, mas apenas esse voyeurismo doentio dos espectadores de tragédias? Ao menos em momentos destes podia cessar o ódio irracional, as frustrações transformadas em bestialidade, sem destinatário certo nem razão alguma de inteligência. Ah este povo do futebol... Hoje esta crónica sai curta. Menos de vinte e quatro horas depois do minuto 91 do jogo de Guimarães, nada mais tem dignidade para ser falado. Um jovem na flor da vida, que amava o futebol e que por ele lutou sempre por um lugar ao sol, que nunca chegaria a alcançar, caiu morto em pleno campo de batalha, vergado ao golpe, entre todos, decisivo. De que mais se pode falar, nesta hora? Dos jogos do fim-de-semana, da beleza daquela jogada do Deco, abrindo caminho para o primeiro golo do Porto, ou daquele voo do Moreira sobre o avançado do Guimarães? Sim, talvez, noutras circunstâncias. Falar do jogo do título, do Sporting-Porto, do próximo sábado? A única coisa que me ocorre agora é esperar que ninguém se magoe, no campo, nas bancadas ou fora do estádio. Nada mais sobra para dizer. Apenas um desejo: que lá, onde está agora, o Mikki Fehér possa ao menos continuar a seguir os jogos de futebol de que tanto gosta através do Satélite Tranquilidade.

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