terça-feira, novembro 30, 2004

Começa-se a ver mais claro ( 30 Novembro 2004)

Victor Fernandez privilegia claramente os jogadores de contenção, em lugar dos criativos, como Quaresma ou Carlos Alberto, no que é um indicador quase sempre seguro de um treinador que não gosta de correr riscos e desconfia dos jogadores capazes de o fazer. Arrisca-se a ser campeão por inércia, a menos que qualquer dia a sorte se canse de lhe dar oportunidades


O campeonato ultrapassou o seu primeiro terço, tem sido o mais disputado dos últimos anos e, agora que começa o terço de Inverno, já é possível começar a ver mais claro. Lá em cima, a surpresa é o Boavista e o segundo lugar que ocupa — muito por fruto da sua vitória, injustíssima e caída do céu, no Dragão. Depois de um início de campeonato oscilante e marcado por uma crítica impiedosa aos processos de jogo da equipa, foi visível que Jaime Pacheco acusou o toque e andou hesitante entre um futebol mais positivo ou um futebol mais produtivo de pontos: em Alvalade tentou a primeira versão e foi esmagado; no Dragão, nem a jogar contra dez durante mais de uma hora se atreveu a atravessar a linha do meio campo, e quando finalmente o fez, aos 93 minutos, ganhou o jogo. Mesmo levando em conta o historial do Boavista nos jogos contra os grandes (não ser antipático contra os de Lisboa, morrer em campo contra o Porto), é provável que, experiência feita, Jaime Pacheco prefira ficar pelo futebol feio que dá pontos do que pelo futebol aberto que dá elogios.

Surpresa pela positiva, e apesar da derrota nocturna de ontem, é ainda o Vitória de Setúbal que tem o mais baixo orçamento do campeonato mas que este ano pode aspirar, em princípio, a uma época sem o sobressalto permanente da linha-de-água. Mas, às vezes, começa-se eufórico e acaba-se mal, ou vice-versa. Que o diga Manuel Cajuda que, quando começa bem, não consegue calar os auto-elogios e proclamar pela enésima vez que já merecia um grande. Este ano começou com a euforia da Taça UEFA, mas nem lá chegou ao comando do Marítimo. E a verdade é que, sem ele, o Marítimo teve um grande arranque e o Beira-Mar, desde que ele chegou, ainda não conheceu o perfume de uma vitória: é o mais sério candidato a futuro comentador da Sport TV.

Desilusão ainda, mas esta já habitual, é o Vitória de Guimarães, uma equipa cujo único assomo de competitividade e qualidade futebolística ficou reservada também para o jogo contra o FC Porto, para a Taça. Eliminado o campeão europeu, não é de excluir a possibilidade de desaparecer da Taça já na próxima eliminatória.

Voltando ao topo, o Benfica encaixou o terceiro jogo consecutivo sem vencer e a segunda derrota frente a um União de Leiria que tem sido também uma desilusão em prova. Desfalcado de Miguel e Petit, com Simão desinspirado, o Benfica desapareceu, com toda a naturalidade do mundo. E desapareceu porque, sendo verdade que a equipa revela este ano uma outra e melhor atitude competitiva, também é verdade que apenas tem cinco jogadores de qualidade e nem mais um: Moreira, Miguel, Petit, Manuel Fernandes e Simão. Todos transitados da época anterior, o que significa que as aquisições deste ano não acrescentaram valor algum à equipa. Os sonhos vão sendo alimentados com os Robinhos e os Karagounis, as confissões das estrelas planetárias que não conseguem esconder a ansiedade de virem jogar para o Grande Benfica, mas que depois, estranhamente, acabam por deixar apenas um rasto de cometas longínquos no céu da Luz. O que falta ao Benfica é, muito simplesmente, bons jogadores e dinheiro para comprar bons jogadores.

Comparando com os seus rivais directos, jogador por jogador, o Benfica perde largamente para o FC Porto e claramente para o Sporting. Nem sempre, é verdade, os bons jogadores chegam para fazer uma boa equipa, mas não conheço nenhuma boa equipa que não tenha um mínimo de bons jogadores, sete ou oito, que o Benfica não tem.

O Sporting, sim, tem uma primeira linha de grandes jogadores, embora sem suplentes à altura. Não tem o luxo de poder ter, como o FC Porto (sem lesões) um banco de suplentes com um Pepe, um Carlos Alberto, um Bosingwa, um Fabiano ou um Postiga. Mas tem, em primeira linha, três bons centrais, um meio-campo que integra três grandes tecnicistas e rematodores de meia-distância — Rochembach, um regressado Hugo Viana que já leva cinco golos marcados, e Carlos Martins, talvez a revelação deste campeonato. E, na frente, tem um dos melhores, senão o melhor extremo do campeonato, Douala, e um ponta-de-lança que eu não me canso de elogiar, porque acho um verdadeiro prazer vê-lo jogar futebol: Liedson. Liedson, tirando a sua esporádica vocação teatral, é talvez o melhor jogador do campeonato — mesmo não esquecendo que, no meu clube, joga também um ponta-de-lança fora de série: Benni McCarthy. Mas Liedson consegue reunir a capacidade técnica, a elegância de processos e o instinto de matador a uma inteligência e imaginação activas, que hoje são atributos essenciais de quem joga frente à baliza adversária.

É verdade que tudo isto foi secado no teste de fogo do Dragão, onde o Sporting foi positivamente metido ao bolso por um FC Porto dos grandes jogos. Mas julgo que isso tem mais a ver com factores psicológicos e uma inibição instalada do Sporting perante os momentos decisivos e as equipas sem medo, como é o FC Porto. Não querendo tirar qualquer mérito a José Peseiro, cujo trabalho é ainda demasiado breve para poder ser julgado num ou noutro sentido, não tenho dúvidas de que José Mourinho, por exemplo, faria do Sporting campeão este ano.

No FC Porto, inversamente, Victor Fernandez arrisca-se a ser campeão... por inércia. Ou seja, não é preciso fazer muito para que aquela equipa, com o vício de ganhar e com 12 ou 13 grandes jogadores, seja campeã nacional. De facto, basta não querer complicar inútilmente as coisas, como pretendeu fazer um despassarado Del Neri. E basta acreditar nos jogadores que se tem e não ter medo de querer ganhar sempre. Mas também Fernandez é ainda um melão por abrir. Que é simpático, civilizado, trabalhador, previsível e lógico, é incontestável. Mas falta-lhe o sabor das grandes vitórias, a obsessão de ganhar, a apetência do risco.

Em Moscovo, quarta-feira passada, num jogo onde só a vitória interessava, entre correr o risco de tentar o xeque-mate ou correr o risco de defender o 1-0 até ao fim, ele optou sem hesitar pela segunda alternativa, tirando do jogo McCarthy e Quaresma — os desequilibradores — e abdicando, acto contínuo, do ataque, para viver até final um sufoco que poderia e deveria ter evitado. E ontem à noite, em Setúbal repetiu a receita e, de novo a sorte protegeu a sua falta de audácia e de visão. Mas não escondeu os erros, quase de manual: manter Jorge Costa em jogo depois do primeiro amarelo e quando era evidente que a missão principal de Jorginho era tentar expulsá-lo, como conseguiu; abdicar de um criativo e homem de bolas paradas, como Diego, e, sobretudo, tirando Quaresma em noite de espectáculo, capaz por si só de manter em respeito três defensores contrários, para deixar em campo um inútil Postiga e a seguir fazer entrar César Peixoto, sempre reincidente na inutilidade. Em ambos os jogos, colocado perante situações de tensão e de emergência, tomou sempre as opções erradas e acabou salvo pela sorte e pelo espírito de luta e vontade de vencer dos seus jogadores. Mas, qualquer dia, como de resto já aconteceu, a sorte cansa-se de lhe dar oportunidades. Aliás, o seu conservadorismo é patente na insistência em manter sempre em jogo um Derlei que é uma sombra dele próprio (um golo marcado em toda a época e uma infinidade de golos desperdiçados), e em manter sempre em jogo Costinha e Maniche, quando a condição física de ambos grita por tréguas, a benefício da equipa. Privilegia claramente os jogadores de contenção, em lugar dos criativos, como Quaresma ou Carlos Alberto, no que é um indicador quase sempre seguro de um treinador que não gosta de correr riscos e desconfia dos jogadores capazes de o fazer. Para além disso (e excepto quando ficou na bancada a ver o Porto-Sporting e pareceu ver dali o que nunca tinha visto antes), dá a sensação de ser um treinador que lê mal os jogos, procedendo a substituições extemporâneas ou erradas: que me lembre, nunca a equipa melhorou depois de ele proceder a substituições. É incontestável que tem sido perseguido por uma estranha e ainda por explicar onda de lesões, e agora de castigos, que nunca ou quase nunca lhe permitiram fixar um onze-base e jogar com ele dois jogos de seguida. Mas com um plantel tão rico em soluções e, sobretudo com alguns jogadores cuja capacidade de resolver jogos é tão evidente por si mesma — McCarthy, Carlos Alberto, Quaresma — é estranha a sua persistência em dúvidas, hesitações e escolhas que não fazem sentido.

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