sábado, maio 29, 2004

Às portas do sonho ( 25 Maio 2004)

Amanhã à noite, nas televisões do Mundo inteiro, milhares de milhões de olhos vão seguir as proezas e aprender os nomes de Vítor Baía, Paulo Ferreira, Jorge Costa, Ricardo Carvalho, Nuno Valente, Maniche, Costinha, Deco, Derlei, McCarthy e Carlos Alberto. E nós, lá no estádio, vamos morrer de orgulho pelo nosso clube, as nossas cores, o nosso país. Hoje, terça-feira, juro que é quanto me basta

1. Se alguém tivesse previsto, há 10 anos atrás, que uma equipa portuguesa conseguiria, no espaço de uma década, chegar à final da Liga dos Campeões, eu teria dito que esse alguém ou era um optimista incorrigível ou era um ignorante das coisas do futebol. É certo que, há pouco mais de 10 anos, Portugal teve duas equipas na final da mais importante competição mundial de clubes: oFC Porto em 1987 e o Benfica no ano seguinte. Mas então não vigorava ainda o acórdão Bosman e a a competição não se chamava ainda Liga dos Campeões. Uma e outra coisa vieram mudar por completo o panorama desta competição e diminuir de forma extrema as hipóteses de êxito de países pobres no contexto futebolístico europeu, como é o caso de Portugal. A chamada lei Bosman, recordemo-lo, retirou aos clubes o privilégio do direito de opção sobre jogadores em final de contrato, tornando os melhores jogadores ao serviço dos clubes portugueses presa fácil dos mais poderosos clubes estrangeiros: foi uma lei ao serviço dos ricos e contra os pobres, uma lei a favor dos negócios e contra a formação de jogadores. A Champion’s League, por seu lado, terminando com a representação de um clube por país e substituindo-a por um critério que privilegia o aumento do número de clubes representantes dos países mais poderosos, teve como efeito prático que as equipas portuguesas, em vez de terem de se haver com um tubarão espanhol, um italiano, um inglês ou um alemão, agora têm de se haver com três ou quatro de cada um desses países. Agora não é preciso ser-se campeão nacional no seu país para se ser campeão europeu: basta ser-se clube rico em país rico, como o Chelsea do sr. Abramovitch. A competição ganhou em competitividade, em qualidade, em número de jogos e em dificuldades mas, mais uma vez, desfavoreceu os mais pobres face aos mais ricos. A actual Champion’s League é uma competição feita à medida dos poucos grandes clubes de primeiríssima linha europeia: Real Madrid, Barcelona, Valência, Inter, Milan, Juventus, Lazio, Bayern, Schalcke, Manchester, Liverpool, Arsenal, Chelsea. Os outros, como o FC Porto e o Mónaco, são os outsiders, que servem para animar a fase de grupos mas cujo destino natural é a morte súbita na fase de grupos ou, em anos excepcionais, nos quartos-de-final. E, todavia, aí estão eles — Mónaco e FC Porto — em Gelsenkirchen, para grande frustração e grande humilhação dos tubarões europeus. O impossível, o impensável, aconteceu. E agora, que pouco mais de 24 horas nos separam já do Arena Aufschalke, olho para estas duas equipas, para os seus jogadores, os seus dirigentes, os seus treinadores, com uma profundo respeito e admiração. Chegar aqui foi tão fantástico que nenhum deles merecia a desfeita de não levantar a taça amanhã à noite. E se, como portista e como português, só desejo obviamente que seja o FC Porto a consegui-lo, não deixo também de pensar que, seja qual for o desfecho, Mónaco e FC Porto já conseguiram fazer história na Champion’s League, reeditando cada um deles a eterna história do combate de David contra Golias. Do meu lado, só tenho a agradecer aos jogadores e ao treinador desta grande equipa que é este FC Porto por me terem levado o ano passado a Sevilha e me terem trazido este ano a Gelsenkirchen. Por terem tornado possíveis os sonhos que eu nem ousava sonhar, por terem desmentido o impossível, por terem feito com que amanhã à noite, uma vez mais, as camisolas azuis e brancas e o nome do FC Porto atravessem os céus do Mundo inteiro e sejam levados pelos satélites a todas as casas do planeta onde mora um adepto deste desporto fantástico. Amanhã à noite, nas televisões do Mundo inteiro, milhares de milhões de olhos vão seguir as proezas e aprender os nomes de Vítor Baía, Paulo Ferreira, Jorge Costa, Ricardo Carvalho, Nuno Valente, Maniche, Costinha, Deco, Derlei, McCarthy e Carlos Alberto. E nós, lá no estádio, vamos morrer de orgulho pelo nosso clube, as nossas cores, o nosso país. Hoje, terça-feira, juro que é quanto me basta. Não adianta especular se jogarão exactamente aqueles onze ou um ou outro no lugar de algum deles. Se jogaremos em 4x4x2 ou em 4x3x3, ao ataque ou na expectativa, cansados ou com força, corajosos ou com receio. Se eu estivesse no lugar de Mourinho, depois de feito todo o trabalho de casa, limitar-me-ia a dizer aos jogadores: «Chegaram até aqui, o que é uma honra e uma proeza única. Agora limitem-se a ir lá para dentro e jogar o que sabem, com alegria e orgulho, sem medo nem constrangimentos. Tudo o que acontecer será inesquecível.»

2. Eu sei que altos interesses nacionais e ditos «patrióticos» recomendam que se calem agora todas as críticas à Selecção e ao próprio Euro. Aliás, esta velha retórica parece ser extensível a tudo o resto, para além do futebol: ainda anteontem, no congresso do PSD, o primeiro ministro ensaiou o discurso de «quem não está por nós, está contra Portugal».Mas só falo no assunto porque o Tribunal de Contas, distraído de dever geral de patriotismo a que o Euro obriga, se lembrou de escolher este momento para tornar públicas as contas dos estádios municipais construídos ou melhorados para o Euro. E o que o tribunal veio revelar esclarece as razões pelas quais alguns, como eu, foram desde o início contra este patriótico acontecimento: nem um só estádio cumpriu o orçamento — no mínimo a derrapagem foi do dobro, outros derraparam três e até quatro vezes o custo inicial previsto; algumas câmaras municipais gastaram com o seu estadiozinho a totalidade do orçamento municipal para um ano de actividade, obrigando-as a endividarem-se perante a banca, o que fará subir o custo final, com os respectivos juros; e nenhum dos estádios, segundo o Tribunal de Contas, conseguirá no futuro assegurar o finaciamento das despesas de manutenção apenas com recurso às receitas geradas: ou seja, é um encargo eterno. O que o tribunal agora veio revelar confirma apenas aquilo que qualquer português avisado já deveria esperar: que qualquer empreitada pública jamais cumpre o orçamento anunciado. Não por acaso, os únicos estádios do Euro que cumpriram os orçamentos foram aqueles cuja parte substancial do pagamento ficou (ou deveria ter ficado) a cargo dos clubes seus proprietários. Mas quando é o Estado central ou as autarquias o dono da obra já se sabe que esta, misteriosamente, acaba sempre por custar o dobro ou o triplo do anunciado. Foi também por saber isso e não esperar outra coisa que fui desde logo contra a ideia do Euro em Portugal. Por respeito pelos portugueses que trabalham e pagam impostos. Ou seja, na minha concepção, por patriotismo. Se a isto acrescentarmos o que o Estado central gastou nos quatro estádios privados, o que a câmara de Lisboa gastou nos estádios de Benfica e Sporting e eventualmente a câmara do Porto nos estádios do Dragão e do Bessa, se acrescentarmos todo o imenso rol de investimentos para além dos estádios (e tive ocasião de ver na altura o extenso caderno de encargos exigido pela UEFA), chegaremos a números finais que são tão chocantes que eu duvido, simplesmente, que alguma vez venham a ser revelados em toda a sua extensão aos portugueses. Não se trata de ser miserabilista ou ter uma atitude de princípio contras as grandes festas públicas. Trata-se de dizer a verdade. Pôr os números reais em cima da mesa, dizer «custa isto, pagam estes, aproveitam aqueles» e, no final, perguntar às pessoas se acham que era necessário.

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