Não gostava de estar no lugar do Cristiano Ronaldo e digo-o com sinceridade: acho que a responsabilidade moral de ganhar essas quantias indecorosas apenas por ter nascido com talento para chutar a bola, não me iria deixar gozar o dinheiro em paz.
1- Manuel Machado, treinador da Académica, acha que a sua equipa merecia ter empatado e não perdido com o FC Porto. Em sua opinião, tal só não aconteceu na segunda parte, porque «faltou eficácia e uma pontinha de sorte», tendo acabado por sofrer o segundo golo «de forma pouco ortodoxa», além de que o juiz-de-linha «fez vista grossa» a uma mão de Ricardo Costa dentro da área — «um penalty muito claro», quando havia 0-2. Claro que os treinadores são livres de escreverem a historia do jogo tal como a entendem. Em todo o caso, julgo que, ao fazê-lo, deveriam ter sempre presente que não foram os únicos a ver o jogo nem são uma autoridade especialmente qualificada na matéria. Pelo contrário, milhares de pessoas no estádio e muitos mais milhares em casa, através da TV, vêm melhor o que se passou, em especial os lances duvidosos, do que eles vêm, sentados ao nível do relvado. Ora, anote-se.
A «pontinha de sorte» sobejou largamente à Académica quando, até à meia-hora de jogo, já tinha visto três bolas baterem-lhe nos postes da baliza e três remates frontais dentro da área desperdiçados pelo ataque portista. Se estivesse a perder por 0-3 ao intervalo, teria sido absolutamente normal face ao que se passou até aí: mas estava a perder apenas por 0-1. A «forma pouco ortodoxa» como o FC Porto chegou ao segundo golo foi através de um fabuloso cruzamento de letra de Ricardo Quaresma, que deixou o centro da defesa dos estudantes aos papéis. Claro que podemos sempre reclamar contra estes jogadores «pouco ortodoxos» que dão cabo das melhores estratégias dos treinadores, mas ainda bem que os há...
Quanto ao pretendido penalty cometido por Ricardo Costa (também referido na critica de A BOLA), ele foi tudo menos evidente, através das imagens televisivas. Mas há uma imagem — aliás, duas, também a do penalty assinalado a Marek Cech, que deu o golo à Académica — que são eloquentes. São duas fotografias de ambos os lances, publicados lado a lado na edição de domingo deste jornal. Na primeira, o reclamado penalty de Ricardo Costa, vê-se a bola a bater-lhe entre o braço e o peito e diz a legenda da fotografia que ele «controla a bola com a ajuda do braço». Talvez sim, mas não é de certeza o que se vê na fotografia. O que aí se vê é o braço do jogador caído ao longo do corpo — não está levantado, não está adiantado nem puxado atrás, não está a fazer o menor movimento de procurar a bola. Está inerte ao longo do corpo e Ricardo Costa está a olhar em frente, sem sequer ver a bola. Se a prova documental é esta fotografia, gostava de saber como é que se consegue garantir que é braço na bola e não bola no braço.
A segunda fotografia, a do penalty assinalado a Cech é ainda mais eloquente, porque essa desmente expressamente a legenda e confirma que não houve penalty algum.
Diz a legenda que «a perna direita de Cech está em contacto com o joelho direito de Filipe Teixeira». Bom, demos de barato a célebre tese de penalty por «contacto», tão cara aos comentadores portugueses. Esqueçamos também a óbvia pergunta de saber porquê que é a perna direita de Cech que está em contacto com o joelho direito de Filipe Teixeira, e não o joelho deste com a perna do outro. Mesmo assim, o que a fotografia mostra, sem margem para dúvidas, é que a perna direita de Cech está meio metro à frente do joelho e do pé do adversário e joga a bola, que aquele não tinha qualquer hipótese de jogar. De resto, não se vê nem jogo de braços, nem inclinação do corpo, nem nada na atitude do jogador portista que indicie qualquer falta — chegou primeiro à bola e jogou-a; o adversário atirou-se para o chão e o árbitro marcou penalty. E Manuel Machado ainda queria mais destes, para justificar a justiça do empate...
2- Foi um jogo de estatísticas curiosas (e socorro-me das de A BOLA). O FC Porto teve 52 por cento de posse de bola contra 48 por cento; teve 8 cantos contra 4; 15 remates contra 7; 7 remates perigosos contra 3; 3 bolas nos postes contra 0; 2 golos contra 1. O resultado justo seria o empate? Bom...
Mas há outra estatística do jogo curiosa: 7 cartões amarelos a jogadores do Porto, contra 1 a jogadores da Académica — a fazer lembrar o Benfica-Porto, em que foram 6 contra 1. Para quem não viu o jogo, o FC Porto deve ter dado um festival de pancadaria em Coimbra. Mas, não, parece que, apesar do maior tempo de posse de bola, mais remates, mais cantos, etc, etc, passou foi o jogo a queimar tempo: nada menos do que quatro jogadores portistas viram o amarelo por causa disso. A coisa fica ainda mais curiosa quando se realiza depois que cinco deles ficaram na fronteira da suspensão após terem visto um amarelo neste jogo. Entre eles, Quaresma e Bruno Alves (este com um cartão verdadeiramente anedótico, mas potencialmente importantíssimo, quando se sabe que Pepe está de fora...). Coincidência? Sem dúvida. Como é coincidência o 5º amarelo que Simão nunca mais viu ou a virada no campeonato proporcionada pelas duas derrotas consecutivas do FC Porto após a expulsão e consequente suspensão do Quaresma, em Leiria.
3- Nunca fui defensor da máxima comunista a trabalho igual, salário igual. Pelo contrário, sempre defendi que não há trabalhos iguais. Há quem trabalhe e quem se limite a estar no emprego; há quem seja bom e quem seja medíocre; há quem seja excelente e quem seja absolutamente excepcional. Cada um deve ganhar conforme o valor do seu trabalho e do seu talento. Mas, entendo que há, todavia, um limite. Um limite de pudor, em termos sociais, que é difícil de justificar, quando ultrapassado. Também acho que Ronaldo é um génio do futebol e provavelmente o melhor jogador do mundo, actualmente. Não ignoro que vê-lo jogar é um prazer planetário, ao alcance gratuito de milhões de pessoas: ele distribui alegria e prazer pelo planeta e isso paga-se. Mas quando penso que uma equipa de três investigadores americanos acaba de descobrir que, bloqueando 57 células do corpo humano, se consegue que os tratamentos de quimioterapia para o cancro sejam mil vezes mais eficazes, podendo assim aliviar mil vezes o sofrimento dos doentes, fico chocado quando comparo o que eles fazem e o que ganham com o que faz e o que ganha Cristiano Ronaldo. Com o seu talento natural e o seu empenho físico, Cristiano pode distrair momentaneamente da dor e da doença milhões de seres humanos; eles, com o resultado de anos a fio de estudo e de investigação solitária, podem curar da doença ou retirar a dor a milhões de seres humanos. Eles ganham mil contos por mês; ele vai ganhar 44 000 por dia, livre de impostos, mais outro tanto em publicidade. Não gostava de estar no lugar do Cristiano Ronaldo e digo-o com sinceridade: acho que a responsabilidade moral de ganhar essas quantias indecorosas apenas por ter nascido com talento para chutar a bola, não me iria deixar gozar o dinheiro em paz.
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