terça-feira, abril 12, 2005

Este jogo é fascinante ( 5 Abril 2005)

O ténis é apenas um desporto onde podemos ter os nossos preferidos mas não temos o nosso clube, as nossas cores; o futebol é uma militância cívica, uma catarse individual e de tribo



1 Domingo à noite, e depois de três horas a ver futebol —o FC Porto-Gil Vicente e o Benfica-Marítimo —, prolonguei a sessão televisiva nocturna com mais umas três horas a ver desporto, neste caso a final do torneio de ténis de Miami, entre o n.º 1 do Mundo, Roger Federer, e a nova estrela da inesgotável fábrica espanhola, RafaelNadal. Eu sei que são horas de mais diante da televisão mas, para além de ter sido uma raridade, sempre é melhor, mais estético e mais instrutivo que 10 minutos que sejam a ver a Quinta das Celebridades ou outras imbecilidades que tais. Quer como praticante amador quer como espectador de bancada ou de televisão, o futebol e o ténis foram sempre, ao longo de toda a minha vida, os meus desportos de referência. Ambos têm em comum a beleza da geografia estratégica desenhada sobre o terreno de jogo, amagia intermitente de jogadas de sonho, a emoção de um desfecho tantas vezes pendente até ao último sopro de energia dos atletas. O que o futebol tem a mais que o ténis são as camisolas. No ténis, tirando o sagrado templo de Wimbledon — onde a tradição obriga a que todos equipem de branco—, não há equipamentos fixos nem cores de camisolas que identifiquem os antagonistas. Não se joga, não se torce nem se sofre por uma camiso la, pelas nossas cores, o que equivale a dizer que aqui não há clubismos. E o clubismo é uma parte determinante da paixão irracional pelo futebol. Nesse aspecto o ténis é apenas um desporto onde podemos ter os nossos preferidos mas não temos o nosso clube, as nossas cores; o futebol não: o futebol é uma militância cívica, uma catarse individual e de tribo.

No Mundo inteiro, de África aos antípodas, podemos encontrar gente com uma camisola do Figo ou do Deco mas não encontraremos ninguém com uma camisola do Federer ou do Agassi. Essa é a vantagem decisiva, cósmica, do futebol. Mas em tudo o resto, dei comigo a pensar domingo à noite, o ténis é um desporto muitíssimo mais fascinante que o futebol, quer do ponto de vista do praticante quer do ponto de vista do espectador.

Se não tem o carácter de guerra tribal, o ténis tem, inversamente, a natureza do duelo singular, que é uma característica determinante de toda a história da humanidade, desde os duelos dos gladiadores do circo romano até aos duelos à espada e à pistola com que, até ao dealbar do século XX, se lavavam ofensas, resolviam rivalidades ou pagavam dívidas de honra.Num jogo de ténis assistimos a umcombate singular emque não há empates e só pode haver um vencedor e um vencido e onde, instintivamente, tendemos para o lado domais fraco, do mais corajoso ou daquele cujo tipo de jogo mais nos entusiasma, sendo até normal que mudemos de campo durante o mesmo jogo. São entre duas e cinco horas de batalha física, técnica e psicológica, com alternâncias constantes, vencedores iminentes que paralisam à beira da vitória e derrotados aparentes que ressuscitam de repente e reentram num jogo que já parecia perdido. A segunda vantagem do ténis é que o campo está dividido a meio por uma rede, o que traz consequências de vária ordem e todas elas positivas, quando comparamos com o futebol: não há contacto físico entre os jogadores, o que implica que não há faltas nem simulação de faltas, não há jogo subterrâneo, não há forma de evitar que o adversário jogue o que sabe, a não ser jogando melhor ou mais inteligentemente que ele; não há possibilidade de estratégias defensivas, através da ocupação do terreno, porque cada um tem o seu, delimitado do outro— há, sim, jogadores que são tecnicamentemais defensivos que outros, que não descem à rede ou arriscam seu jogo e não uma estratégia defensiva que possa ser planeada e ensaiada.

Terceira vantagem do ténis é que aqui o árbitro tem apenas uma importância residual e rarissimamente é chamado a tomar decisões controversas que possam influir no desfecho do encontro. Não há livres, nem penalties, nem cartões amarelos ou vermelhos, e, se cada bola ganha equivale a um golo, num encontro há uma média de 150 a 250 golos, conforme o encontro seja à melhor de três ou de cinco partidas — ou seja, ninguém pode jamais reclamar que uma decisão errada do árbitro ou dos fiscais de linha decidiu o jogo.

Enfim, quanto ao desporto em si mesmo, o ténis—o ténis de alto nível — exige e tem atletas que trabalham muito mais e estão mais bem preparados que os futebolistas, que são mais inteligentes, mais cultos, e para quem o fair play não é uma figura de estilo. E, depois, são profissionais liberais, que correm por sua conta e risco: não estão encostados a um contrato de vários anos celebrado com um clube, que lhes paga, quer produzam quer não; no ténis, quando não se joga a alto nível, quando não se ganha torneios, não se ganha dinheiro nem contratos de publicidade.

Na minha vida de espectador conheci grandes, geniais, jogadores de futebol, dos quais o maior de todos chamava-se Johan Cruyff, que jogou no Ajax e no Barcelona e juntava um talento de predestinado a uma inteligência de jogo que nuncamais vi ninguém igualar. Mas mesmo ele, apesar da memória das horas de puro prazer estético que lhe devo, não consegue afastar qualquer coisa como, por exemplo, a recordação da inesquecível final de Wimbledon em que John McEnroe evitou a sétima vitória consecutiva de Bjorn Borg, no final de um inesquecível combate de quase quatro horas e meia em que tudo o que é deslumbrante no desporto—a excelência técnica, a resistência física, a força anímica, o drama, a coragem, a capacidade de risco e de inovação— esteve presente, para a eternidade. Só para que se entenda o limite de exigência desportiva e cívica entre um deus do estádio e um deus dos courts vale a pena lembrar que McEnroe, o homem que recuperou o ténis de ataque e de espectáculo, que passava cada jogo em constante risco e jogo de rede, que partia raquetes no chão e berrava aos céus quando falhava uma bola, foi afastado da cerimónia oficial da entrega dos prémios em Wimbledon porque a muito tradicional gentry tenística inglesa não lhe perdoou que tenha dito a um árbitro «you are the shame of humanity! » («você é a vergonha da humanidade!»). Agora comparem com aquilo que, todas as semanas e sem precisar de sermos especialistas emleitura de lábios, vemos jogadores e até treinadores lançar aos árbitros!

Pelo que, quando o futebol me deprime, viro-me para o ténis. E saio sempre a ganhar.

2 E o futebol vai-me deprimindo este ano. Omeu FC Porto lá quebrou o enguiço do Dragão e, pauperrimamente, conseguiu vencer o Gil Vicente, por 1-0. Tanto bastou para que se cantassem loas ao «recuperado FCP» e ao ressuscitado Hélder Postiga, que falhou dois golos certos e viu a imprensa atribuir- lhe finalmente o primeiro golo da época, muito embora me tenham ficado as maiores dúvidas de que tenha chegado a tocar na bola e antes da risca de golo. Enfim, salve-se o aparecimento de alguns miúdos, chamados Ivanildo, Ibson e Leandro do Bomfim, que não foram campeões da Europa nem do Mundo e ainda parecem ter a ambição que era a imagem de marca desta equipa antes de ter sido superiormente devastada.

O Sporting assinou uma primeira meia hora de verdadeiro luxo no Bessa, que bastou para lhe justificar a vitória.Mas, como de costume, não conseguiu mais que meia hora, apesar de, também como de costume, ter encontrado um Boavista que é um mãos-largas para os grandes de Lisboa e uma equipa intratável para o rival do Porto. Contra o Sporting o Boavista nem faltas fez! Não havia necessidade, por isso, das duas ajudas cirúrgicas que o inevitável Lucílio Baptista resolveu dar aos rapazes de verde e branco, na segunda parte.

Na Luz o Benfica caminha inexoravelmente para o título e desta vez jogou também a melhor meia hora de toda a época, muito embora a sua defesa tenha sido ridicularizada pelo ataque do Marítimo e só tenha chegado à vitória com mais um frango do guarda-redes adversário. Mas, bem ou mal, já nada trava, em minha opinião, a cavalgada final para o título tão longamente ansiado. As últimas dúvidas desfizeram- se há 15 dias atrás, aos 25 minutos do jogo de Alvalade, quando Rui Jorge conseguiu expulsar McCarthy e deixar o Porto privado do seu Liedson para quatro jogos.

Aqui, les jeux sont faits. O que me vale é que já falta pouco para Roland-Garros.

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