Sinto que anda no ar uma atmosfera do antigamente, um projecto subliminar de subversão das regras democráticas do jogo, para regressar aos pacíficos tempos em que o mais forte mandava e os outros obedeciam.
1- Anteontem, tal como milhões de outros portugueses, fui votar nas eleições presidenciais. Nos últimos 31 anos, desde que vivemos em democracia, nunca deixei de votar. Muitas vezes votei em branco (o mais político e significativo dos votos) mas nunca deixei que os outros decidissem por mim, sem que eu próprio fosse consultado. Esse é o meu direito e simultaneamente o meu dever. Na minha maneira de ver as coisas, quem foge aos impostos e abstém-se nas eleições não tem o direito de se queixar do que quer que seja. A cidadania democrática exige que se cumpram primeiro os deveres e só depois se reclamem os direitos.
Além do mais, gosto dos dias de eleições. Gosto da alegria tranquila dos portugueses nas ruas, daquela sensação de que é um dia especial - o nosso dia, o dia em que somos ouvidos e tudo se decide às claras, em que a opinião de cada um conta exactamente o mesmo que a opinião dos outros. Gosto dessa festa da democracia que se sente no ar, das famílias caminhando para as assembleias de voto, dos fatos domingueiros, dos vizinhos que se encontram para votar e falam-se, como às vezes não se falam durante um ano inteiro. Vivi toda a minha infância e juventude à espera disto e nunca ninguém mais me tirará isto. O meu 25 de Abril.
Meio a sério, meio a brincar, costumo dizer que o 25 de Abril só se cumpriu verdadeiramente quando a democracia chegou também ao futebol. Quando, em 1978, o FC Porto pôde, enfim, ser campeão e pôr fim ao oligopólio lisboeta do Benfica-Sporting, instalado nos hábitos e cultura do Estado Novo e do País. Nesse dia o país futebolístico democratizou-se também, abriu-se a uma nova fronteira - o Porto e o Norte - a que, mais tarde, se juntou também o Boavista. Não aceitarei em silêncio que ninguém mais me volte a tirar isto. E se hoje o escrevo, tendo como ponto de partida de reflexão as eleições de domingo passado, é porque sinto que anda no ar uma atmosfera do antigamente, um projecto subliminar de subversão das regras democráticas do jogo, para regressar aos pacíficos tempos em que o mais forte mandava e os outros obedeciam. Há um nevoeiro de arrogância reencontrada e subserviência correspondente, um todo-poderoso que atropela as regras, reclama privilégios de autoridade e exige dos outros silêncio, medo e obediência. Sabem a que me refiro: os sinais estão todos aí.
2- Perguntava Maló que interesse poderá ter tido um clube como a Académica em emprestar um jogador ao Benfica. O contrário sempre se viu, agora um clube pequeno emprestar um jogador a um grande nunca se tinha visto. Tentemos perceber olhando mais de perto uma história contada com grandes cerimónias e dúvidas silenciadas.
Marcel era o melhor jogador da Académica. Em 15 jogos tinha marcado nove dos 14 golos da equipa. Depois dele julgo que a Académica não voltou a marcar. Custou caro aos estudantes, em Julho passado, e tinha uma cláusula de rescisão de 3,5 milhões de euros. Quinze dias antes do jogo com o Benfica deixou de comparecer no clube, com quem tinha contrato válido e, que conste, salários em dia e nenhum motivo de conflito. No dia seguinte ao jogo com o Benfica, a que não compareceu, apresentou-se na Luz, como novo reforço benfiquista e declarando que tinha sido contactado "oficialmente" pelo Benfica... 15 dias antes - ou seja, exactamente quando desapareceu de Coimbra. Já José Fonte, do Vitória de Setúbal, tinha feito semelhante: rescindiu unilateralmente com o Vitória na véspera do jogo com o Benfica e apareceu na Luz, como novo reforço, no dia seguinte ao jogo. E ambos confessando-se ben-fiquistas desde a infância. Transparente.
Mas o negócio de Marcel é, de facto, curioso. A Académica ficou sem ele, teve de ir ao mercado comprar um substituto e não viu um tostão do Benfica pelo negócio. Foi emprestado, com direito de opção em Julho próximo. Quer isto dizer que, mesmo que o Benfica pague a totalidade dos seus salários até Julho, a Académica só pode sair a perder do negócio: ou o Benfica o devolve em Julho, porque não gostou dele, ou exerce o direito de opção, mas de certeza que por menos que os 3,5 milhões, porque nessa altura tanto o Benfica como o jogador estarão numa posição de força privilegiada (e que agora já demonstraram) para forçar o desconto que quiserem. Que ganhou a Académica? E, se cair na II Divisão (como caiu o Estoril no ano passado, depois de ter sido forçado ao negócio da troca de campo no jogo com o Benfica), quanto lhe terá custado o voo de rapina da águia?
Veja-se o Vitória de Setúbal: já sofreu tantos golos em três jogos sem o Moretto como os que tinha sofrido em 15 com o Moretto. E foi forçado a vendê-lo tão barato que o próprio presidente do Benfica se comoveu e decidiu acrescentar uma gorjeta ao preço pago (?). E o patético Chumbita ainda se prestou a uma coisa inédita, que foi participar na cerimónia de apresentação do jogador aos sócios do Benfica. Agora a única esperança de viabilidade do Vitória é esperar que o Governo aprove um projecto de urbanização que é uma vergonha pública mas permitirá salvar um clube que está falido por actos de gestão como este.
Este fim-de-semana, pelo menos, houve uma alteração de métodos. Na véspera de jogar com o Gil Vicente o Benfica não tratou de seduzir ou desviar nenhum jogador do adversário (não havia nenhum que o justificasse): desta vez limitou-se a prometer que, depois do jogo, lhe emprestaria dois jogadores. Uns cavalheiros.
3- Em Braga, quando se viu derrotado, Nuno Gomes sugeriu por gesto explícito que os adversários estavam drogados. O País inteiro viu na televisão e percebeu a mensagem. Na Figueira da Foz, contra a Naval, Co Adriaanse terá exclamado para dentro do campo "é falta!", a propósito de uma jogada qualquer. Ninguém viu nem ouviu, excepto o árbitro. Nuno Gomes levou de castigo 450 euros de multa; Co Adriaanse levou dois jogos de suspensão. Que falta que têm feito este ano as cotoveladas do McCarthy! Desde que ele recolheu os cotovelos, já repararam que nunca mais houve uma cotovelada no futebol português? Anda tudo tão santinho que até um tipo dizer "é falta!" é considerado uma ofensa grave...
4- Mas, à falta de cotovelos portistas, temos mãos. Uma abundância de mãos, de adversários benfiquistas. Encomendei uma sondagem à Euroteste: nos últimos 30 jogos da Liga (o que abrange também a parte final do campeonato do ano passado), 90 por cento das mãos ou supostas mãos sancionadas dentro das áreas resultaram empenalties a favor do Benfica.
5- 0 campeonato está na sua fase decisiva, em que quem se destacar agora tem todas as possibilidades de já não ser alcançado. Sábado joga-se o Benfica-Sporting, domingo o Rio Ave-FC Porto. Pois foi justamente nesta altura que a FPF engendrou um acontecimento chamado Torneio Vale do Tejo, em que a Selecção B de Portugal (uma coisa que nem sabíamos que existia) vai ter de defrontar, entre quarta e sexta-feira próximas, umas obscuras selecções do Leste. Convocados para este importantíssimo torneio estão quatro jogadores do Sporting, todos eles titulares habituais, e cinco do FC Porto, entre os quais o decisivo Ricardo Quaresma. Do Benfica... nenhum. Segundo explicou o seleccionador, o Manuel Fernandes, por exemplo, "está debilitado fisicamente e nos próximos tempos nem sei se posso contar com ele". Será o mesmo Manuel Fernandes que, no sábado passado, jogou a partida inteira contra o Gil Vicente?
Que torneio irão inventar na semana do Benfica-FC Porto - o Torneio Segunda Circular ou o Torneio Benfica Campeão?
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