Escrita em dia
O Euro-2004, tal como qualquer outra megarrealização como esta, compõe-se de duas partes: a festa e a factura. Nunca fui contra a festa, fui sempre contra a factura. Para os «patriotas» das bandeirinhas a questão é, seguramente, indiferente. Para os patriotas que pagam impostos não o é
1- Tinha avisado os leitores de que iria afastar-me uma semana desta coluna, mas circunstâncias outras fizeram com que essa ausência afinal se prolongasse por duas semanas. E, se entendi fazer esse aviso previamente é porque sabia que, sem ele, o meu silêncio subsequente poderia ser interpretado como fuga, por parte de quem sempre se manifestou contra o Euro desde a primeira hora e contra Scolari desde há muito. Perante o êxito, real ou forçado, de um e de outro, sabia que haveria fatalmente quem ficasse a pensar «o tipo, agora, achou mais prudente calar-se». Bruxo: vinha no avião, de regresso do Brasil a Portugal, e lium artigo do António Tavares-Teles onde ele se perguntava que era feito dos criticos do Euro, que estavam todos em silêncio. Dos outros não sei, mas de mim, sabe o António que não sou pessoa de ficar em silêncio perante as responsabilidades e que só circunstâncias mais fortes do que eu me impediriam, como impediram, de falar na hora certa. Mas, embora tarde, não fujo ao desafio. O Euro-2004, tal como qualquer outra megarrealização como esta, compõe-se de duas partes: a festa e a factura. Nunca fui contra a festa, fui sempre contra a factura. A festa foi maravilhosa, melhor do que as melhores expectativas — que, aliás, nunca pus em causa. Ao contrário de outros, nunca me pronunciei, por falta de conhecimento, sobre as expectativas relativas à parte organizativa do Euro. Ouvi dizer que os aeroportos não iriam dar conta do tráfego aéreo, que os acessos aos estádios não iriam estar prontos, que a segurança não conseguiria dar resposta aos problemas, etc e tal: nunca cavalguei essa onda, nunca fiz uma previsão sobre o assunto, limitei-me a esperar para ver. E, tendo visto, acho que é de toda a justiça reconhecer que a organização foi fantástica, o ambiente fabuloso e a festa magnífica. Mesmo sob o aspecto meramente desportivo, o Euro foi muito melhor jogado do que eu esperava, muito embora — e, isso, sim, previ—as grandes selecções tenham feito uma triste figura, em resultado da saturação das suas principais vedetas: França, Espanha, Itália e Inglaterra despediram-se cedo do Euro, deixando para trás a imagem de Zidane, Beckam, Raul arrastando-se em campo, desesperadamente gritando por férias. E a Taça acabou entregue à Grécia, assim uma espécie de Boavista da Europa, que nenhum europeu acredita possa ser a melhor selecção europeia. Agora, vamos à factura. Se a festa fosse dada pelo rei dos ciganos ou, digamos, pelo eng. Belmiro de Azevedo, tido como o homem mais rico do País, eu não teria nada a ver com o assunto: o dinheiro era deles, que fizessem o que quisessem. Mas, quando a festa é feita pelo Estado, isso significa que é feita com o meu dinheiro e o dos restantes pagadores de impostos, e aí tenho tudo a ver com o assunto. Porém, não tenho nenhuma posição de princípio contra as festas feitas e pagas com o dinheiro do Estado: fui a favor da Lisboa-Capital da Cultura, do Porto-Capital da Cultura e entusiasticamente a favor da Expo-98. Porquê? Porque o investimento feito nas festas se prolongava para além delas e constituía até uma oportunidade de recuperação urbana e investimento produtivo. Justamente por estas razões é que fui desde o princípio —desde que tive oportunidade de ler, antes de todos, o caderno de encargos do Euro-2004 — um adversário, de cidadania, desta festa. Sem dúvida, Portugal teve uma grande projecção mediática com o evento (não sei se tanta que compense o próprio investimento feito na promoção...), sem dúvida, todo o sector da restauração teve um mês de prosperidade como nunca, mas a minha dúvida é se será legítimo que o Estado gaste centenas de milhões de contos (os outros números, os do ministro Arnaut, são conversa para papalvos...) para beneficiar um só sector da vida económica do País. O turismo e a restauração saíram a ganhar, sem dúvida, mas agora é altura de pagar a conta. Há seis estádios, construídos pelas autarquias e que, segundo um estudo divulgado pelo jornal Público, demorarão dez anos a pagar, que em alguns casos representaram a totalidade das verbas anuais de investimento da respectiva autarquia e que, ou o Estado central cobre as dívidas ou as autarquias que sedearam estádios para o Euro ficarão durante muito tempo sem verbas para investir nas políticas de habitação, de equipamentos sociais, de apoio à juventude ou terceira idade. E há seis estádios, financiados pelo Estado, via autarquias, de que nem um só cumpriu o respectivo orçamento (a obra-prima de Braga, por exemplo, custou só três vezes mais do que o previsto...) e de que nem um só tem expectativas de, uma vez que seja nos anos mais próximos, justificar a sua capacidade de 30 mil lugares ou de gerar receitas que consigam cobrir a respectiva manutenção. Ou seja, ficámos com seis elefantes brancos para pagar e para sustentar no futuro – à custa de dinheiros públicos, não certamente dos clubes usufrutuários. Para os patriotas das bandeirinhas, a questão é, seguramente, indiferente. Para os patriotas que pagam impostos, não o é. 2- E a Selecção? Scolari e os outros 23 heróis da Pátria, condecorados como tal pelo Presidente da República? Pois, o que acho é que tiveram condições como nenhuma outra Selecção Nacional jamais teve: país organizador, com todos os apoios, explícitos e implicitos, daí tradicionalmente decorrentes; dispensados da qualificação e de jogos a doer, durante dois anos; apoiados por um país inteiro, em estado de euforia; prémios de jogos, contratos publicitários, mordomias todas; imprensa rendida, aliada e acrítica; calendário de jogos garantindo sempre mais tempo de repouso entre jogos do que o dos adversários: enfim, tudo, rigorosamente tudo, a favor, como jamais. Balanço final: ganharam três jogos, empataram um e perderam dois. Heróis nacionais? Porque não, agora que tudo parece tão fácil – chegar ao poder ou ser herói? 3- Scolari demorou dois anos e precisou da derrota inicial contra a Grécia para perceber o que já todos tinham percebido: que a sua selecção estava errada. Na iminência do descalabro, só lhe restava mudar tudo e mudou: passou a ser tido como um génio, porque tinha visto a necessidade de mudar – embora depois de toda a gente. Tendo mudado e tendo passado a ganhar, achou que o assunto estava resolvido e que nunca mais precisaria de voltar a mudar. Jogou contra a Grécia como tinha jogado contra a Holanda, a Inglaterra ou a Espanha. Achou que a receita era universal, como já antes havia sido a receita oposta. Que não era preciso estudar o adversário nem adaptar-se a ele. Otto Reaghel fez o inverso, fez o que lhe competia: estudou a segunda versão da selecção de Scolari, certo de que ela não traria novidade alguma, e manietou-a por completo. Tornou Portugal impotente e conseguiu que a pior equipe ganhasse o jogo e o Campeonato: eis um treinador a sério. Scolari ficou com a Ordem do Infante e com o sorriso orelha-a-orelha dos brasileiros, a quem perguntei a sua opinião sobre o mestre: «Fiquem com ele, por amor de Deus, fiquem com ele!» 4- No Brasil, onde estive a semana passada, perguntei também pelas novas aquisições feitas ou a fazer pelos clubes portugueses. O «meia» Paulo Almeida, que o Benfica foi buscar, «não vale grande coisa». Luis Fabiano, que se diz cobiçado pelo FC Porto é uma fraca versão de Roberto Dinamite: ora dá, ora não dá, mas não sabe jogar de cabeça. Já Diego – que o FC Porto igualmente cobiça, mas que não irá conseguiré unanimemente tido como o grande jogador brasileiro do futuro, «um novo Zico», a quem só lhe falta aprender a jogar sem olhar para a bola. Entretanto, há um brasileiro novo na estima local: chama-se Deco, viram-no em Gelsenkirchen e viram-no no Euro e perguntam-se como é que Filipão não o viu para a Selecção doBrasil. Em Paraty, cidade histórica de apenas quatro mil habitantes, vi três locais com a camisola do FC Porto e duas delas tinham nas costas o nome de Deco. Para o ano vão ter de vender em Paraty camisolas do Barcelona. 5- Ricardo, o guarda-redes da Selecção, prossegue o seu ajuste de contas pessoal. Depois da lastimável entrevista dada antes do Euro, cheia de insinuações sem destinatário concreto, eis que chega agora um livro de desabafos, onde o substancial parece ser uma página onde ataca Vítor Baía. Forte do único dos seis penalties que conseguiu defender no desempate contra a Inglaterra, acha-se no direito de atacar ainda quem não se pôde defender em campo. Baía foi um senhor na forma como encarou o seu afastamento da Selecção e do Euro – que, como o Ricardo bem sabe, teve origem em tudo menos no mérito e na justiça. Bastaria ao Ricardo, depois de ver afastado o seu rival por obscuras razões, ter tido uma simples palavra dizendo que seguramente Baía tinha lugar entre os três melhores guarda-redes seleccionáveis: teria saído da controvérsia em grande, como Baía saiu. Mas, não, parece que a sombra ainda o atormenta. E com razão, afinal: será que o Baía teria permitido aquele cabeçeamento dentro da pequena área que deu o Euro à Grécia?
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