sábado, agosto 03, 2013

NADA ESTÁ ESCRITO (14 MAIO 2013)

1- «Nada está escrito» foi o que T. E. Lawrence (vulgo Lawrence da Arábia), disse ao Sheriff Faysal, quando este o quis dissuadir de voltar atrás meio deserto do Sinai para ir em busca de um companheiro que ficara perdido na marcha do Exército Árabe, dizendo-lhe que estava escrito que ele não tinha salvação possível.

Nada está escrito foi aquilo de que ninguém se lembrou, quando, à 27ª jornada, os benfiquistas celebraram como campeões o triunfo no Funchal contra o Marítimo, o Marquês de Pombal acordou com uma pintura a vermelho dizendo «reservado», António Costa anunciou as celebrações da vitória no edifício da Câmara e até Vítor Pereira atirou a toalha ao chão, declarando o campeonato já entregue. Mas nada estava ainda escrito.

No espaço de cinco dias, o Estoril-Praia, a quem fora reservado apenas o papel de bombo da festa, silenciou a Luz, fez os benfiquistas viverem um resto de semana de tremedeira indisfarçável e, em consequência disso, sucumbirem no Dragão, fazendo o destino dar uma volta de 180° graus e, de vendedores antecipados, passarem a vencidos amargurados. E, todavia, nada está, ainda, escrito: a deslocação do FC Porto a Paços de Ferreira, na última jornada deste emocionante campeonato, vai ser tudo menos um passeio triunfai, como abaixo direi.

Mas é isto mesmo, afinal, que faz o sortilégio do futebol: não apenas a beleza geométrica e técnica do jogo em si mesmo, mas também a sua faculdade de mudar, de repente, toda a escrita feita. Se o FC Porto for mesmo campeão para a semana, há uma imagem que ficará para sempre na minha memória-e que caracterizará eternamente o desfecho deste campeonato: a fotografia aqui publicada no domingo passado, tirada no Dragão nos instantes seguintes ao golo da vitória portista, e onde se vê Jorge Jesus em primeiro plano, ajoelhado, quebrado, esmagado pelo golpe do destino, e Vítor Pereira saltando de alegria no plano atrás. Viva o futebol, onde nada está escrito!

2- Primeiro, saudemos os bastidores do grande jogo. Apesar dos esforços de empolamento de alguma comunicação social, não houve incidentes de maior a registar — antes, durante ou após. A polícia fez o seu trabalho bem feito, não ficou registo de feridas ou detidos, e algumas escaramuças menores, com os inevitáveis alienados mentais de ambos os clubes, foram menos que uma gota de água num oceano de tantas borrascas anunciadas. Os responsáveis de ambos os lados abstiveram-se de declarações incendiárias durante a semana e os protagonistas do jogo portaram-se com desportivismo após: mesmo as recriminações esperadas dos benfiquistas à nomeação de Pedro Proença (alimentadas mais de superstições do que de razões), foram contidas.

Pedro Proença fez uma hábil e eficaz arbitragem, num jogo que era tudo menos fácil de dirigir. Pessoalmente, acho que ele contemporizou de mais com o antijogo dos benfiquistas, a teatralização das faltas, as lesões simuladas, as perdas de tempo (só Ola John fez-se assistir três vezes na segunda parte!), mas não teve qualquer influência no que foi importante. Apenas uma distracção de um fiscal-de-linha, ia permitindo um golo em off-side a James - que, felizmente para ele, para nós, para o campeonato, foi desperdiçado. E tenho a certeza de que, se o Benfica tem ganho ali o jogo e o campeonato, ninguém da Direcção do FC Porto mandaria apagar as luzes e ligar a rega. Foi tudo limpinho, limpinho.

3- O jogo, em si, foi inevitavelmente tenso e emocionante, minuto a minuto, jogada a jogada.Mas um mau jogo de futebol, disputado entre duas equipes amarradas à táctica e às considerações de dois treinadores tolhidos pelo medo, nenhum deles procurando ir ao encontro do destino. Dos dois, foi Jorge Jesus quem mais concedeu, descaracterizando o futebol da sua equipa, o tipo de jogo que fez com que, e justamente, o Benfica fosse, durante dois terços da época, a equipa de referência.

Jogando ostensivamente para o empate desde o minuto primeiro, defendendo sempre com dez jogadores atrás da linha da bola, renunciando a existir no campo todo,alimentando o antijogo da sua equipa e reforçando-a para defender quando o FC Porto já estava exausto de força e de crença e qualquer veleidade ofensiva do Benfica teria causado o pânico, Jorge Jesus limitou-se a esperar que o destino viesse ter com ele. E, como tantas vezes e felizmente sucede, pagou um amargo preço por tanto calculismo e cautelas, quando já cantava imerecida vitória. Jesus leva quatro anos a ser sovado às mãos do FC Porto e a razão principal continua a mesma: o medo que o tolhe quando vê o adversário de azul e branco.

Do outro lado, e fiel a si mesmo e às suas limitações, Vítor Pereira apostou numa equipa e num jogo que qualquer ignorante teria adivinhado: Atsu descartado, Varela a titular e Defour de prevenção, o fantasma de Lucho Gonzalez a arrastar-se até custar ver, Moutinho a lutar sozinho contra a desinspiração geral, muita posse de bola, muita segurança sem rasgo, muitos ataques, zero oportunidades.

James, a jogar recuado, estava uma sombra de si próprio, Varela igual a si mesmo, desperdiçando jogo às catadupas face a um Maxi Pereira absolutamente vulnerável (apenas uma boa jogada com grande remate que Artur defendeu tão subtilmente com dois dedos que nem Pedro Proença percebeu que era canto). Sem extremos, o FC Porto atacava pelo melo, com passes e mais passes, rodriguinhos, cerimónias sem fim na hora de atirar à baliza, enfim, uma total ausência de audácia na hora em que se tratava de decidir toda uma época.

A salvação de Vítor Pereira, também imerecida, chegou-lhe através daquele a quem ele chamou um «irresponsável» (entre aspas), que se atreveu a «ter um pontapé daqueles num jogo daqueles». Ou seja, o tipo de jogador que ele abomina, que, em lugar de ficar um jogo inteiro a jogar conforme as instruções - 'passa e volta a passar, para o lado e para trás, mas jamais te atrevas a tentar romper e arriscares-te a perder a bola'. Kelvin, como Atsu e Iturbe ou Djalma, como James na época passada, é o tipo de jogador de que Vítor Pereira desconfia por natureza e que, como todos os outros, foi sempre preterido a um Silvestre Varela — que não rompe, não marca, não assiste e não resolve, mas para ali anda.

Seja qual for o desfecho deste campeonato e desta época, eu não mudo de opinião: tenho um desejo imenso de ver ali outras ideias, outra atitude, alguém que privilegie o talento sobre a segurança e que não tenha medo de pegar em miúdos indisciplinados e talentosos e pô-los ao serviço da equipe, em lugar de se descartar desse incómodo.

4- Mas nada ficou escrito e o FC Porto vai ter uma última jornada terrível em Paços de Ferreira. Não apenas pelo adversário, que provou ser a terceira melhor equipa da época, não apenas pelas dificuldades do campo, mas sobretudo pela pressão de quem veio da condenação, não ainda para a salvação, mas apenas para a sua possibilidade. Mas lamento que um título nacional de futebol, em 2013, se vá decidir num campo que não tem condições nem dimensões adequadas para tal e que, por isso mesmo, não poderá ser usado pelo Paços na Champions. Insisto num ponto em que não me canso de falar: o nosso futebol não avançará, nem será produto digno de exportação televisiva enquanto não for obrigatório em jogos da Liga que a dimensão mínima dos relvados seja a máxima.

5- A opinião largamente dominante entre os benfiquistas é que, se perderem o campeonato, isso ficar-se-á a dever ao empate contra o Estoril e não à derrota no Dragão — pelos vistos, tida como desfecho provável e previsível. Todavia, a verdade é que no jogo contra o Estoril, o que me parece é que o Benfica não perdeu dois pontos, mas ganhou, sim, um ponto: porque, se os dois erros de arbitragem ocorridos a seu favor (um penalty por marcar e um golo do Estoril interrompido por off-side inexistente) não tivessem acontecido, o Benfica poderia ter chegado ao intervalo a perder por 0-2 e, face ao que se viu na segunda parte, não é provável que conseguisse o empate.

Ora, esse ponto faz toda a diferença: obriga o FC porto a ganhar em Paços de Ferreira, não lhe bastando o empatar. Se empatar e o Benfica vencer o Moreirense, o que lhe terá dado o campeonato será...paradoxalmente..., o ponto conquistado contra o Estoril. Eis como nada está escrito.

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