sexta-feira, agosto 09, 2013

COMO A FIFA CONSEGUIU PEGAR FOGO AO BRASIL (25 JUNHO 2013)

1- A FIFA não tem culpa dos males endémicos do Brasil, como a corrupção a todos os níveis, o tráfico de influências, as ineficiências estruturais e, acima de tudo, a profunda desigualdade social. Mas a FIFA tem culpa dos seus pecados originais e nunca emendados: a ganância, a arrogância, a insensibilidade social e politica. A FIFA (e a sua filial europeia, a UEFA) vê o futebol como um negócio de ricos e para ricos, cujo objectivo final é proporcionar aos seus dirigentes uma vida de nababos. Ora, justamente o que fez do Brasil a pátria do futebol foi o futebol de pé descalço, o futebol das praias, das ruas, dos morros. Lula tirou 20 milhões de brasileiros da absoluta pobreza, graças ao plano chamado bolsa família, inspirado no RSI de José Sócrates. Mas apesar disso, do petróleo, do ferro, da devastação da Amazónia, o Brasil não deixou ainda a sua condição de país atrasado e, em muitas zonas, subdesenvolvido. Porque as riquezas são mal distribuídas e porque entre a mata e a mina ou a jazida, muito dela desaparece, sem deixar rasto. Ou, quando o deixa, os criminosos ficam impunes, porque estão bem protegidos. O Brasil, que justamente aspira ao lugar que a sua imensidão e riqueza justificam no plano internacional, tem ainda um longo caminho a percorrer, antes de poder fazer figura de novo-rico. E foi isso que o Brasil se atreveu a fazer, com a organização de três mega-eventos mundiais em quatro anos: a Taça das Confederações, o Mundial de 2014 e os Jogos Olímpicos do Rio, de 2016.

A tentação brasileira de fazer figura de rico em lugar de deixar de fazer figura de pobre, encontrou--se, desgraçadamente, com a voracidade da FIFA de cobrar os seus eventos a custos pornográficos. Se a FIFA não fosse, como é, uma associação de mal-fazer aos países, a primeira exigência que faria aos candidatos à organização dos Mundiais é que os gastos com os jogos não ultrapassassem determinado limite — definido em função do PIB e do rendimento per capita de cada país. Mas o que a FIFA faz é exactamente o inverso; exigir um mínimo de gastos para aceitar uma candidatura — e esse mínimo é astronómico. É por isso que a FIFA, sem vergonha alguma, aprovou o Mundial de 2022 no Catar — um país onde não há a menor tradição futebolística, nem sequer habitantes para ir aos estádios ou onze profissionais para formar uma selecção. Mas que vai pagar uma nota preta para ter o Mundial, incluindo a colocação de ar condicionado no interior dos estádios, para que se possa jogar com temperaturas próximas dos 50º. E, para que o escândalo passasse, já se soube que alguns dos membros da FIFA foram devidamente sensibilizados (e mais não se sabe porque o assunto foi convenientemente chutado para debaixo do tapete).

E eis que, de repente, um povo inteiro que se suponha estar exultante com tanta festa prometida, rebenta nas ruas, proclamando que prefere hospitais e escolas decentes, transportes públicos de qualidade, do que os magníficos estádios novos impostos pela FIFA (como o novo Arena de Manaus, condenado ao abandono logo após o Mundial). Até porque, como qualquer um conseguiria prever, o custo dos estádios já disparou quatro vezes o preço inicial (só a remodelação do Maracanã vai já em seis vezes o orçamento!). Com toda a razão, os brasileiros perguntam como pode gastar tanto dinheiro numa festa um país onde falta dinheiro para o essencial. E perguntam de que lhes servirá os milhões de visitantes anunciados, se o custo disso é uma inflação que voltou a querer disparar e que em alguns casos, como o imobiliário, atinge custos totalmente incomportáveis para o cidadão médio? Antes do Mundial e dos JO, o Brasil era um país atrasado, mas com crescimento acelerado e cada vez mais pobres a acederem à classe média. Agora, é um país quase estagnado e em que muita gente da classe média está a voltar à pobreza, porque não pode sustentar os custos de um Brasil internacional.

Acresce que algumas das regras impostas no caderno de encargos da FIFA foram recebidas como um insulto às tradições e leis do país. Percebo bem do que se queixam; quando Portugal lançou a sua candidatura ao Euro-2004, o governo de então convidou-me para ser porta-voz dela — convite que recusei e que viria a ser aceite por Carlos Cruz. Mas, educadamente, pedi para ver o caderno de encargos, antes de confirmar a minha recusa, perante a insistência. E o que vi, fez com que, além da minha razão inicial para recusar (porque entendia que o Euro-2004, com os seus dez estádios, novos ou remodelados, era um luxo de que o país não precisava e que o futuro se encarregaria de revelar um desperdício, como hoje está à vista), concorresse uma outra razão impeditiva da minha aceitação; as exigências que a UEFA fazia eram uma ofensa às leis e à soberania económica do país. Porque os queridos patrões da UEFA e da FIFA não se limitam a ganhar rios de dinheiro com a venda de bilhetes e de direitos televisivos; eles participam também em todos os negócios conexos aos eventos e em condições tais que pouco sobra para a concorrência local. E quem já viu actuar de perto os exércitos que a UEFA e a FIFA deslocam para os eventos que promovem — os meninos e meninas, os assessores, os chefes intermédios e os figurões — decerto se deu conta das mordomias e do luxo ostensivo de que aquela gente se rodeia. Os clubes podem estar falidos, os países podem ser pobres, mas a UEFA e a FIFA, essas, fazem vida de organizações milionárias. Os brasileiros, aliás, sabem bem o que a casa gasta, pois durante muitos anos o grande chefe desta próspera família foi o brasileiro João Havelange — e está tudo dito.

E é por isso que eu, para usar, adaptada, uma frase imortal de um coronel da ditadura brasileira, quando oiço alguém começar a sugerir um Mundial de Futebol ou uns Jogos Olímpicos em Portugal, apetece-me logo puxar da pistola!

2- Continuando no capítulo dos dinheiros do futebol, tropecei esta semana num interessantíssimo artigo no Público, da autoria de António Samagaio, professor de Economia no ISEG. Era acerca dos Fundos de jogadores, agora tão em moda entre nós, e que têm três características, digamos, opacas: ganham sempre avultadas quantias no co-financiamento da compra de parte dos passes aos clubes, mesmo quando estes perdem dinheiro; são invariavelmente sediados em paraísos fiscais; e não se conhecem os seus donos. Dois dias depois, ainda no Público, o artigo mereceu resposta de Angelino Ferreira, administrador da SAD do FC Porto. Contestando a falta de transparência atribuída aos Fundos, Angelino Ferreira defendia que eles eram a única forma que permitia a clubes como o FC Porto, Benfica ou Sporting, financiarem-se para se poderem manter relativamente competitivos no mercado de jogadores e nas competições internacionais, visto que o crédito bancário fechou portas. E acrescentava que a tentativa, ora em curso por parte da UEFA, de vedar o recurso aos Fundos de jogadores, só iria agravar mais ainda o fosso entre os 15 clubes muito ricos da Europa e aqueles a que poderíamos chamar a classe média/alta. O argumento é pertinente e é verdade também que só os parvos se deixarão convencer pelas proclamações a favor do fair-play desportivo-financeiro, do Sr. Platini. Quisesse ele, deveras, bater-se por alguma igualdade entre a concorrência, e clubes como o Real Madrid, os dois Manchester, o PSG e agora o Mónaco, não se poderiam comportar como piratas no mercado. Não impede que o argumento principal de António Samagaio tenha permanecido e permaneça sem resposta: sem saber quem são os proprietários dos Fundos, como se pode falar em transparência? Basta deitarmo-nos a imaginar quem poderão eles ser...

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